quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Filmes que gostei
Viver / Ikiru (1952, Kurosawa) Uma vida de dedicação a um serviço público burocratizado e ineficiente refletida diante do câncer. O que resta de relações entre amigos e parentes? É possível se resgatar de uma vida tão mal vivida?
Morangos Silvestres / Smultronstället (1957, Ingmar Bergman) Um melancólico retorno ao passado, às paixões e tudo aquilo que toca na alma.
O Sétimo Selo / Det Sjunde inseglet (1957, Ingmar Bergman) Há mistérios na vida que só poderão encontrar vazão pela descrença ou pela fé.
Spartacus / Spartacus (1960, Stanley Kubrick) Às vezes, nem as armas mais modernas e as estratégias de guerra mais sofisticadas podem derrotar um homens movidos por sentimento.
O Olho do Diabo / Djävulens öga (1960, Ingmar Bergman) As tentações da Terra podem ser entusiasmantes para os que não vivem fantasias idealizadoras sobre o mundo.
12 Homens e uma Sentença / 12 Angry Men (1957, Sidney Lumet) A capacidade de ação de uma mente ágil e astuta para mudar um destino selado.
A Bela da Tarde / Belle de Jour (1967, Luis Buñuel) A mente humana e suas perversões sem preconceitos ou prejulgamentos, apenas revelada.
O Joelho de Claire / Le Genou de Claire (1970, Eric Rohmer) A energia masculina despendida para satisfação de um fetiche e, afinal, nem tudo é o que parece ser.
Laranja Mecânica / A Clockwork Orange (1971, Stanley Kubrick) Nessa sociedade distópica, quem são os verdadeiros deliquentes?
Amor à Tarde / L'Amour l'après-midi (1972, Eric Rohmer) Duas mulheres, uma sedutora, outra a esposa, a quem se conhece de longa convivência. Boas conversas e reflexões sobre o amor.
Livros lidos (ordem cronólogica)
Três contos (1877, Gustave Flaubert) Uma empregada sensível generosa, cuja vida é marcada pela perda. Um papagaio, no entanto, dá novo sentido à sua vida. No segundo conto, um santo medieval, São Julião Hospitaleiro.
A Morte de Ivan Ilitch (1886, Leon Tolstoi) Uma carreira promissora na magistratura e uma vida pessoal sempre atenta às expectativas da sua classe são interrompidas por uma fatalidade. Do que valeu tudo isso, afinal?
Menino de Engenho (1932, José Lins do Rêgo) O Nordeste dominado pela Casa Grande, sob a condução incontrastável do seu Senhor. Uma deliciosa volta ao tempo dos engenhos em decadência.
Doidinho (1933, José Lins do Rêgo) O contraste da opressão do internato e os prazeres no engenho nordestino - pessoas, comida e liberdade aos olhos de um garoto.
O Estrangeiro (1942, Albert Camus) O mundo é uma grande farsa. Ao final, todos iremos morrer e nada é realmente importante a ponto de ganhar uma atenção indispensável. Só não espere a compreensão alheia.
Cangaceiros (1953, José Lins do Rêgo) O Nordeste cruel, sem falsas romantizações, em que a força da bala e do dinheiro são as verdadeiras autoridades e se impõem sobre todas as relações sociais. A vida vale pouco numa região abandonada à sua própria sorte.
O Fim da Eternidade (1955, Isaac Asimov) O amor e seu poder de influenciar decisivamente nos caminhos da história. Uma ficção sensacional.
O Homem do Castelo Alto (1962, Philip K. Dick) Os nazistas venceram a 2ª Guerra Mundial. Alemanha e Japão repartiram entre si os Estados Unidos. Os negros são escravos e os judeus se escondem em falsas identidades. Uma visão assustadora de um mundo comandado pelo totalitarismo que põe em xeque a própria noção de realidade.
Pontos de Vista de um Palhaço (1963, Heinrich Boll) A hipocrisia da elite burguesa aos olhos de um dos seus filhos. Uma crítica ácida à religião na Alemanha pós 2ª Guerra.
Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968, Philip K. Dick) Num futuro distópico, após a guerra Terminus, poucos seres humanos sobraram na Terra. Quase todos os animas e plantas foram extintos e os que sobraram dão sentido à nova divisão social do planeta. Numa realidade sombria, um homem arrisca a vida caçando androides inteligentes em busca da sua própria espécie animal real.
O Guia do Mochileiro das Galáxias (1979, Douglas Adams) A Terra foi destruída e apenas dois humanos sobreviveram guiados por alienígenas. Uma viagem surreal e viciante pelo espaço e por planetas desconhecidos.
Cosmópolis (2003, DonDellilo) Uma grande metrópole e seu caos cotidiano aos olhos de um investidor multimilionário. A economia nas mãos dos círculos financeiros e uma anomia social coletiva.
Fantasma Sai de Cena (2007, Philip Roth) A Nova Iorque de Cosmópolis, menos distópica e mais real. As feridas aberta da guerra contra o terrorismo e os desejos irrealizáveis da mente masculina em primeiro plano.
O Verão Sem Homens (2011, Siri Hustvedt) Quanto mais as mulheres conhecem a si e exploram esse autoconhecimento para afirmar sua individualidade, maior sua capacidade de administrar e direcionar suas emoções. Não há amor mais doentio que não possa ser, com as medidas certas, superado.
O Habitante Irreal (2011, Paulo Scott) Amor e desencanto entre um jovem de classe média e uma índia em condições miseráveis. Alternativas para ele, fim de linha para ela.
A Morte de Ivan Ilitch (1886, Leon Tolstoi) Uma carreira promissora na magistratura e uma vida pessoal sempre atenta às expectativas da sua classe são interrompidas por uma fatalidade. Do que valeu tudo isso, afinal?
Menino de Engenho (1932, José Lins do Rêgo) O Nordeste dominado pela Casa Grande, sob a condução incontrastável do seu Senhor. Uma deliciosa volta ao tempo dos engenhos em decadência.
Doidinho (1933, José Lins do Rêgo) O contraste da opressão do internato e os prazeres no engenho nordestino - pessoas, comida e liberdade aos olhos de um garoto.
O Estrangeiro (1942, Albert Camus) O mundo é uma grande farsa. Ao final, todos iremos morrer e nada é realmente importante a ponto de ganhar uma atenção indispensável. Só não espere a compreensão alheia.
Cangaceiros (1953, José Lins do Rêgo) O Nordeste cruel, sem falsas romantizações, em que a força da bala e do dinheiro são as verdadeiras autoridades e se impõem sobre todas as relações sociais. A vida vale pouco numa região abandonada à sua própria sorte.
O Fim da Eternidade (1955, Isaac Asimov) O amor e seu poder de influenciar decisivamente nos caminhos da história. Uma ficção sensacional.
O Homem do Castelo Alto (1962, Philip K. Dick) Os nazistas venceram a 2ª Guerra Mundial. Alemanha e Japão repartiram entre si os Estados Unidos. Os negros são escravos e os judeus se escondem em falsas identidades. Uma visão assustadora de um mundo comandado pelo totalitarismo que põe em xeque a própria noção de realidade.
Pontos de Vista de um Palhaço (1963, Heinrich Boll) A hipocrisia da elite burguesa aos olhos de um dos seus filhos. Uma crítica ácida à religião na Alemanha pós 2ª Guerra.
O Guia do Mochileiro das Galáxias (1979, Douglas Adams) A Terra foi destruída e apenas dois humanos sobreviveram guiados por alienígenas. Uma viagem surreal e viciante pelo espaço e por planetas desconhecidos.
Cosmópolis (2003, DonDellilo) Uma grande metrópole e seu caos cotidiano aos olhos de um investidor multimilionário. A economia nas mãos dos círculos financeiros e uma anomia social coletiva.
O Verão Sem Homens (2011, Siri Hustvedt) Quanto mais as mulheres conhecem a si e exploram esse autoconhecimento para afirmar sua individualidade, maior sua capacidade de administrar e direcionar suas emoções. Não há amor mais doentio que não possa ser, com as medidas certas, superado.
O Habitante Irreal (2011, Paulo Scott) Amor e desencanto entre um jovem de classe média e uma índia em condições miseráveis. Alternativas para ele, fim de linha para ela.
domingo, 19 de outubro de 2014
Projetos políticos e cultura
Um dos principais expoentes do debate cultural no âmbito do marxismo, o intelectual Antonio Gramsci dizia que todos os indivíduos são intelectuais, visto que participam, em maior ou menor grau, de uma determinada visão de mundo, recheada de valores, expectativas, hábitos e de percepções sobre a realidade. Ainda que somente uma parcela exerça efetivamente a função de intelectual, todas as pessoas, na medida em que difundem essa ou aquela visão de mundo, contribuem para conservar ou transformar a existência humana.
Sua teoria política contribuiu para enriquecer e reoxigenar a esquerda brasileira a partir da década de 80, quando o Leste Europeu vivia a crise do socialismo real. Vista a partir de então com menor preconceito e não mais como um reflexo automático da base econômica, a cultura passou a ganhar maior importância na luta social da esquerda, contribuindo para a construção de novas práticas, novos sujeitos sociais e revelando uma maior atenção à formação de valores e atitudes políticas.
O nível das discussões nos marcos do processo eleitoral para a presidência do Brasil revela traços exemplificativos da teoria gramsciana, na proporção em que expõe a cultura manifestada enquanto filosofia de fé num cenário de disputa entre projetos em boa medida antagônicos. Afinal, é isso que sugerem os argumentos irracionais e críticas de baixo calão, cuja agressividade extrema sugere que estamos diante da final de uma Copa do Mundo e não de visões de país que, transformados em políticas públicas, vão beneficiar a interesses tais ou quais na sociedade brasileira.
É, portanto, absolutamente compreensível que certas camadas da sociedade depositem confiança no projeto representado por Aécio Neves. Durante o governo do PSDB, o acesso à universidade pública era privilégio de setores economicamente favorecidos, assim como o ingresso nos melhores cargos através de concurso público. Contratar empregados e empregadas era relativamente mais fácil, barato e menos burocrático no governo tucano. O problema é quando isso é mascarado por argumentos moralistas e acríticos, que apontam a corrupção como exclusividade deste ou daquele partido e não como resultado de um sistema político que começou muito tempo atrás para favorecer os donos do poder – os mesmos que impedem que o povo decida sobre um modelo mais democrático e menos excludente de sistema político.
A moralização e afirmações irreflexivas como as que apontam uma necessidade de alternância de poder buscam, na realidade, esconder caminhos e assertivas diferentes para o país. A luta pela realização de novos valores humanos não se encerra nas eleições de outubro, corresponde a um longo caminho a ser percorrido para que possamos viver com inclusão social, sem preconceitos e intolerância entre as pessoas. Além das questões econômicas e de distribuição social, está em jogo a busca contínua e perpétua pela construção democrática e o direito à vida e à liberdade. E é por isso que, do lado de lá, estão Marco Feliciano, Pastor Everaldo, Bolsonaro e Silas Malafaia, verdadeiros retrocessos civilizacionais.
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
O Estrangeiro (Albert Camus, 1942)
Mersault é um sujeito atípico e conformado. Não uma conformação como a de quem espera a salvação na vida eterna e aceita passivamente o seu destino aguardando a compensação futura. Ele não espera nada da vida, não guarda grandes ilusões, desejos ou ambições. Sua resposta típica é "tanto faz". Quando a sua mãe morre, ele vai ao seu enterro de maneira protocolar, lamentando por conta do tempo que leva até chegar ao asilo onde ela passou seus últimos dias. Preferia que não houvesse a obrigação moral que exige sua presença nas cerimônias que se sucedem ao falecimento.
Para ele, todas as vidas se equivalem e o hábito resigna as pessoas, as quais se adaptam às suas novas condições sem maiores conflitos pessoais. Assim foi com a sua mãe, que o seguia com os olhos o tempo inteiro quando estava em casa e que, apesar da alteração proporcionada pela mudança para o asilo, teria, ao fim de alguns meses, chorado se a tivessem tirado de lá. Suas reflexões, francas, são profundamente humanas, como quando declara que todos os seres normais já haviam, em certas ocasiões, desejado, em alguma medida, a morte dos que amavam.
Pouco tempo após a morte da sua mãe, acompanhado da sua nova namorada, Marie, ele vai à casa de praia do amigo de seu vizinho, Sintès. Este está envolvido numa relação conflituosa com uma mulher e esse conflito terá um desfecho trágico na praia. Tomando as dores do amigo, Mersault, numa ocasião inusitada e estranha, portando a arma do amigo, desfecha quatro tiros contra o rival de Sintès, sendo preso por isso.
A seguir, na prisão, temos uma série de eventos que fazem relação com o julgamento. A pouca importância sobre a existência de Deus diante do juiz confirmam a personalidade prática do protagonista. Nem a possibilidade de ser condenado à morte o afeta. Qual é a diferença entre morrer agora ou morrer daqui a 20 ou 30 anos? O planeta tem 4,8 bilhões de anos e nossa existência individual (e mesmo a da espécie, que está na Terra a um período relativamente pequeno) nada mais do que é um simples sopro. Mortos, sem esperança de uma outra vida à nossa espera, nada disso terá mais qualquer importância. Não somos nós, apenas, que acabamos, mas o próprio mundo, o universo. Tudo, nessas condições, não passam de um nada.
Outras pessoas olhariam esse cenário e buscariam aproveitar o tempo de sua passagem na Terra, otimizando o prazer e adotando no hedonismo um refúgio diante da condição natural de que todos, na medida em que vivemos, damos, ao mesmo tempo, um passo a mais no encontro com a morte. Mersault é indiferente e um bom exemplo disso é quando aceita o casamento com Marie, sem discussão, sem buscar demover tal ideia como também sem grande entusiasmo diante da proposta.
Condenado à morte, não se desespera. Nega a visita do capelão e, apesar da insistência deste que acaba o encontrado, mantém-se fidedigno às suas convicções. É um personagem interessantíssimo, cerebral, bem construído e contemporâneo. Sua riqueza maior está na ausência de superficialidades ou de guarida diante de uma sociedade fanática pelo padrão e pelo comum. Mersault é senhor de si, dotado de consciência crítica e emancipado das ilusões humanas que nos são tão presentes e intensas.
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
(1981) Eles não usam black tie - Leon Hirszman
Em 1981, o povo brasileiro tomava as rédeas do seu destino e
desarranjava a transição “lenta, gradual e segura” proposta
pelo governo Geisel durante a década de 70. Os governos militares
fracassaram na condução da economia, cuja maior expressão foi o
bolo do crescimento econômico nunca dividido. Com a desigualdade social cada vez maior e as grande cidades inchando com contingentes populacionais migrando em ritmo acelerado, a qualidade de vida para uma imensa parcela de cidadãos se deteriorava. Os salários baixos, a
desigualdade social escandalosa (o índice de gini, que demarca a
desigualdade atingiu na década de 80 seu pior resultado, 0,636), os
serviços básicos de saúde, moradia, educação, todos precários,
frente a um povo que lutava pelo retorno aos direitos civis básicos,
punham em movimento diferentes tipos de movimentos reivindicatórios.
A “modernização conservadora” do país provocou uma maior
pluralização e, em sentido contrário ao desejado pela ditadura, e
por ela combatido, a um fortalecimento da organização popular
autônoma frente ao Estado.
Neste filme dirigido por Leon
Hirszman, essa combinação, aos olhos de uma família de operários
no subúrbio da cidade grande, fornece uma dimensão riquíssima e
inspiradora na interpretação de atores e atrizes fabulosos, como
Gianfracesco Guarnieri (Otávio), Fernanda Montenegro (Romana), Bete
Mendes (Maria), Carlos Alberto Riccelli (Tião), Milton Gonçalves
(Bráulio) e Francisco Milani (Santini). A obra é inspirada na peça
de mesmo nome e que, em São Paulo, ficou em cartaz durante um ano
inteiro – fato inédito no teatro nacional.
No primeiro momento, conhecemos Tião
e Maria, operários na fábrica e namorados. Diante da revelação da
gravidez de Maria que conta a novidade a Tião na casa do namorado, ambos
decidem noivar. Apesar dessa situação não estar nos planos de
Tião, que pesa a condição financeira para sustentar uma família
neste momento, ele recebe com contentamento a notícia, a qual
anuncia ao seu irmão caçula, ao pai e à mãe, que já desconfiam,
embora não tenham conhecimento, do real motivo para um noivado tão
apressado. Neste momento, Maria se comporta dócil e passivamente,
não exige nada, mas tem expectativas sobre o comportamento do futuro
pai do seu filho, as quais são imediatamente satisfeitas por ele.
Suas famílias, simples, mas de uma
humanidade transbordante, aceitam bem a novidade, embora as
preocupações com a manutenção de um novo lar e a instabilidade do
emprego dos noivos sejam questões que pairam constantemente. Otávio,
pai de Tião, é um dos cabeças do movimento sindical na fábrica,
movimento que aqui aparece na sua forma mais primitiva e
autenticamente popular tal como se forja, com enorme influência,
naquele período – sem grandes estruturas, com alto grande de
solidariedade, espírito crítico e cooperação. Sua grande
insatisfação com a maneira com que os patrões tratam a categoria é
constante e ele organiza ações políticas com outros colegas para
denunciar a situação dos trabalhadores e exigir melhorias.
Tião, que viu o pai ser preso duas vezes pelos militares, não
deposita nenhuma fé na organização sindical. Influenciado por
Jesuíno (Anselmo Vasconcelos), ele está convencido a colaborar com
os patrões e entregar os nomes de líderes do movimento. Em virtude disso, os
donos da fábrica demitem alguns dos principais cabeças visando a
desarticulação sindical. A greve se aproxima, mas o que Tião
espera é tirar proveito dessa oportunidade, o ponto alto da trama.
Quando a greve eclode, enquanto Otávio e outros trabalhadores apanham da polícia na tentativa de mobilizar os colegas, Tião assiste a tudo friamente, convocando os trabalhadores a não se juntarem aos protestos e se dirigirem ao trabalho. Seu pai é levado à prisão e a sua noiva é agredida na barriga por um homem a serviço dos patrões e levada ao hospital sangrando. Forma-se um rede de solidariedade na busca por informações e por conforto aos mais afetados pela reação patronal.
Após retornar à sua casa, Tião é hostilizado por Maria, que abandona o caráter frágil e manso para romper os laços que os unem. Ela não aceita o comportamento submisso e vassalo do seu agora ex-noivo em relação aos patrões. Seu pai, Otávio, e sua mãe, Romana, repetem na severidade da atitude a rejeição à personalidade do filho, expulsando-o do lar.
O filme termina de forma tocante, após o assassinato de um dos principais líderes dos trabalhadores, Bráulio, durante a mobilização da categoria. Uma ampla solidariedade se forma em torno da vítima, unindo não apenas os trabalhadores, mas outras categorias sociais em prol das reivindicações dos operários.
Eles não usam black tie (1981) é um filme histórico que retrata de forma muito rica e abundante os detalhes, gestos e hábitos de um certo contingente social, num determinado momento histórico, e que contribuiu para transformar a relação entre Estado e sociedade civil no Brasil, revelando, a seguir, a maior liderança popular do país nas últimas décadas, o ex-presidente Lula.
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
(1985) Brazil - Terry Gilliam
Em Brazil (1985), estamos em uma sociedade distópica, comandada por
uma burocracia sem rosto, em que tudo é regido por papéis e
procedimentos extenuantes, os quais são manobrados e manuseados não
por uma impessoalidade weberiana, mas por um fetichismo onde máquinas
e regras se impõem sobre os cidadãos e os controlam sem que haja
uma esfera intermediária de regulação dos seus interesses. Prédios
enormes e sem vida que sediam a administração pública funcionam
como espaços asfixiantes, sufocantes, numa sociedade cujo extenso
controle sobre o indivíduo anula e inviabiliza a existência de
diferenças. A experiência visual dessa sociedade criada por Terry
Gilliam é fascinante.
Há uma série de críticas sociais nesta obra que tem uma clara
inspiração em 1984, de George Orwell. As inovações
tecnológicas, a título de exemplo, são claramente incompreensíveis
e parecem nunca funcionar a contento. Sua manutenção depende também
de um Estado e de uma papelada que conduzem a um jogo de poder
pessoal inerentemente conflituoso. A burocracia legisla, julga e
executa, sendo a articuladora do simulado equilíbrio social. A alienação de
amplas camadas sociais se dá pela inserção no consumo e no culto à
beleza.
O enredo gira em torno de Sam Lowry que, após uma confusão boba que
faz com que o Estado confunda um cidadão inocente com um terrorista,
se envolve no caso e, na sequencia, mais profundamente, ao constatar
que a mulher que aparece em seus sonhos está envolvida na discórdia. Aliás,
atentados à bomba parecem ser tão banais nessa sociedade que as
pessoas já não parecem se incomodar com a sua frequência.
Lowry é um indivíduo deslocado desse mundo. Ele não deseja a
promoção que a mãe lhe consegue, não lhe atrai a esposa
prometida, mas não há para si um ponto de fuga, a não ser nos seus
próprios sonhos, momento em que enfrenta inimigos excêntricos e
salva a mocinha do vilão. Na realidade, ele é apenas mais uma impotente peça que integra a engrenagem dessa
sociedade bizarra e fria.
Brazil é uma caricatura do nosso mundo, no qual a reiteração dos horrores e das fraquezas humanas nos levam à naturalização dos problemas do nosso tempo e à indiferença quanto a esses. Não só isso, como a própria superficialidade dos nossos refúgios expressam uma natureza humana banal, vulgar e insignificante. Não poderia ser mais atual e rico em significados.
Brazil é uma caricatura do nosso mundo, no qual a reiteração dos horrores e das fraquezas humanas nos levam à naturalização dos problemas do nosso tempo e à indiferença quanto a esses. Não só isso, como a própria superficialidade dos nossos refúgios expressam uma natureza humana banal, vulgar e insignificante. Não poderia ser mais atual e rico em significados.
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
(1993) A Árvore, o Prefeito e a Mediateca - Eric Rohmer
Uma série de confrontações se revelam nessa obra de Eric Rohmer. O prefeito de uma pequena cidade francesa, Julien Dechaumes (Pascal Greggory) membro do Partido Socialista, pretende construir um grande espaço multimídia na região rural, englobando biblioteca, espaço para exposição de filmes e um ambiente voltado a apresentações teatrais. Essa é a sua grande vedete, busca-se que seja a mais importância obra de sua administração, capaz de galgá-lo a posições políticas ainda mais expressivas.
As variáveis e os impoderáveis da política, as subjetividades que se revelam a partir dos interesses dos cidadãos em torno das ações governamentais e a influência da mídia se descortinam em meio à busca da execução do projeto pelo prefeito. Os diálogos bem construídos e envolventes entre ele e a escritora Bérénice Beurívage (Airelle Domsbale), por quem Dechaumes é apaixonado, dão uma perspectiva pessoal muito original em relação à contenda política.
Embora já se tenham passado mais de duas décadas do lançamento do filme, suas premissas são completamente atuais. Afinal, entre a possibilidade de construir um espaço público que irá proporcionar emprego e desenvolvimento, refreando a sangria migratória das regiões rurais para as urbanas, e a preservação da paisagem rural, o que é mais importante, se é que é possível ter uma opção?
E entre construir um espaço completamente funcional, acabado e completo, e um espaço de maior liberdade de interpretação e remodelação a partir de uma sociedade viva e criativa, o que deve ser feito? E como trabalhar a relação de diálogo entre uma parcela de pessoas insatisfeitas com projetos governamentais e o poder público na resolução dos problemas que afetam a coletividade?
Segundo Weber (1864-1920) a característica mais importante da sociedade moderna é a racionalização. Nesse sentido, é mesmo racional uma grande mediateca toda pensada e planejada em tornos de finalidades específicas, voltando-se firmemente para os interesses econômicos, quando os mesmos recursos poderiam ser aplicados em menor soma em prol da mesma finalidade, mas não são pela própria burocracia racional, na aquisição de imóveis baratos no próprio vilarejo, conforme sugeriu a filha do professor?
A maneira singular e natural como o autor evidencia as causalidades na cadência da vida é feita de forma muito inteligente. Cada capítulo é introduzido pela conjunção adverbial condicional "se", mas o que torna esse recurso tão importante é que as mudanças que a acompanham se associam à relação quase espontânea dos personagens com o mundo, pouco refletida ou constatada por eles.
O filme tem muito a ver com as discussões sobre territórios e os elos constituídos sobre eles, a partir das dimensões de escala (como o projeto que afeta uma pequena cidade entra em crise depois que o partido socialista perde a eleição nacional), dimensões abstratas (a apropriação simbólica sobre a natureza), materiais de origem natural (comportamento do homem, buscando dominar e moldar a natureza em torno dos seus interesses), jurídico-política (o poder que se manifesta pela vontade de quem governa) e econômica (o projeto e sua finalidade de atrair indústrias e empregos).
É por uma capacidade extraordionária de trabalhar com profundidade as várias dimensões da espécie humana que Rohmer, embora com roteiros prosaicos e habituais, consegue ser sempre filosófico e reflexivo.
As variáveis e os impoderáveis da política, as subjetividades que se revelam a partir dos interesses dos cidadãos em torno das ações governamentais e a influência da mídia se descortinam em meio à busca da execução do projeto pelo prefeito. Os diálogos bem construídos e envolventes entre ele e a escritora Bérénice Beurívage (Airelle Domsbale), por quem Dechaumes é apaixonado, dão uma perspectiva pessoal muito original em relação à contenda política.
Embora já se tenham passado mais de duas décadas do lançamento do filme, suas premissas são completamente atuais. Afinal, entre a possibilidade de construir um espaço público que irá proporcionar emprego e desenvolvimento, refreando a sangria migratória das regiões rurais para as urbanas, e a preservação da paisagem rural, o que é mais importante, se é que é possível ter uma opção?
E entre construir um espaço completamente funcional, acabado e completo, e um espaço de maior liberdade de interpretação e remodelação a partir de uma sociedade viva e criativa, o que deve ser feito? E como trabalhar a relação de diálogo entre uma parcela de pessoas insatisfeitas com projetos governamentais e o poder público na resolução dos problemas que afetam a coletividade?
Segundo Weber (1864-1920) a característica mais importante da sociedade moderna é a racionalização. Nesse sentido, é mesmo racional uma grande mediateca toda pensada e planejada em tornos de finalidades específicas, voltando-se firmemente para os interesses econômicos, quando os mesmos recursos poderiam ser aplicados em menor soma em prol da mesma finalidade, mas não são pela própria burocracia racional, na aquisição de imóveis baratos no próprio vilarejo, conforme sugeriu a filha do professor?
A maneira singular e natural como o autor evidencia as causalidades na cadência da vida é feita de forma muito inteligente. Cada capítulo é introduzido pela conjunção adverbial condicional "se", mas o que torna esse recurso tão importante é que as mudanças que a acompanham se associam à relação quase espontânea dos personagens com o mundo, pouco refletida ou constatada por eles.
O filme tem muito a ver com as discussões sobre territórios e os elos constituídos sobre eles, a partir das dimensões de escala (como o projeto que afeta uma pequena cidade entra em crise depois que o partido socialista perde a eleição nacional), dimensões abstratas (a apropriação simbólica sobre a natureza), materiais de origem natural (comportamento do homem, buscando dominar e moldar a natureza em torno dos seus interesses), jurídico-política (o poder que se manifesta pela vontade de quem governa) e econômica (o projeto e sua finalidade de atrair indústrias e empregos).
É por uma capacidade extraordionária de trabalhar com profundidade as várias dimensões da espécie humana que Rohmer, embora com roteiros prosaicos e habituais, consegue ser sempre filosófico e reflexivo.
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Resenha da obra de Milton Santos: A Urbanização Brasileira (parte 1)
Referência: SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
A urbanização brasileira é resultado de um processo fortemente seletivo e concentrador. A urbanização se operou na sociedade privilegiando uma camada da população em detrimento de outra, tornando as cidades territórios onde o conflito é constante e inerente, todavia também de onde as próprias soluções para os problemas podem surgir.
A nossa urbanização pretérita tem uma origem de séculos atrás. Embora durante a maior parte da nossa história tenhamos sido um país de caráter agrícola, a cidade de Salvador viveu um processo notável de urbanização, comandando a primeira rede urbana das Américas junto com Cachoeira, Santo Amaro e Nazaré.
As cidades, a princípio, significavam mais um ambiente onde se afirmava o poder do que um espaço de moradia. Somente a partir do século XVIII, no entanto, os senhores de engenho e os fazendeiros passam a dedicar mais tempo nela, retornando às suas terras somente no período de corte da cana ou de sua moenda (BASTIDE, 1978). O papel das cidades era de sediar o capital comercial e de garantir o funcionamento da burocracia pública.
O que tínhamos como um elemento comum às cidades é a falta de conexão entre elas, prevalecendo uma economia natural voltada à extração de minerais ou à agricultura comercial. Somente no século XIX, com a produção de café em São Paulo serão viabilizados investimentos voltados à implantação de estradas de ferro, melhoria dos portos e de meios de comunicação, dando fluidez a essa parte do território brasileiro. De maneira geral, segue uma tradição de melhoramentos públicos regionalizados no país, a partir da sua dinâmica econômica.
Até o início do século XX, teremos poucas mudanças em relação à taxa de urbanização. De 1925 a 1940, a taxa de ocupação no setor secundário passou de 12% para 10,1%. É a partir de 1940 que a lógica da industrialização vai prevalecer, momento em que temos uma forte redução dos empregados no setor primário, de 64% neste ano para 53,7% em 1960. Nesse período, o setor terciário saltou de 25,9% para 33,2%, enquanto o secundário chegou a 13,1%.
A lógica das atividades industriais introduz um sistema social complexo não restrito apenas à produção, mas à formação de um mercado nacional, dotando o território nacional de equipamentos para integrá-lo, ampliando o consumo e ativando um processo mais consistente de urbanização, saindo da escala regional para a escala nacional.
Entre 1940 e 1980, opera-se uma inversão quanto ao lugar onde as pessoas moram, passando de 26,35% para 68,86% a taxa de urbanização no país. Esse foi um período de explosão demográfica, o que o torna ainda mais relevante para compreensão do momento. Com a lógica industrial, a relação natural com o meio perdeu espaço para a confluência de uma nova lógica: a do meio técnico-científico.
A mecanização do território opera um processo de construção e reconstrução do espaço urbano em larga escala, numa associação direta com os novos padrões de acumulação capitalista, que precisa expandir e atingir novas áreas. A informação, de maneira abrangente, é o motor dessa articulação do território, dotado de equipamento para facilitar sua circulação. São construídas estradas de ferro e estrada de rodagem conectando entre si os lugares mais distantes do país.
Há duas esferas que se interpõem nesse processo: um psicológico (psicoesfera) e outro tecnológico (tecnoesfera). A tecnoesfera traduz numa substituição do meio natural construindo um dado necessário e dominante sobre o território. Sua predominância cria a psicoesfera, fornecendo regras objetivas de racionalidade e de uma imaginário que, assim como a tecnoesfera, são construídas em lugares longíquos. Ela é local, mas produto de um tipo de sociedade e inspirada em regras cujas dimensões são muito mais complexas.
Toda conduta passa a ser dotada de razão e inteligência, em contraste com os espaços opacos, não racionais ou incompletamente racionais. Há uma hierarquização entre regiões com conteúdos e saber e regiões desprovidas de saber, em que uma manda e outra obedece. Isso está simbolizado no filme de Eric Rohmer, A Árvore, o Prefeito e a Mediateca (1993), numa discussão entre o prefeito e sua namorada sobre o porquê do novo espaço espaço de lazer que a prefeitura pretende construir ser tão dotada de funcionalidade, sem muito espaço para abstração ou criatividade.
A urbanização brasileira é resultado de um processo fortemente seletivo e concentrador. A urbanização se operou na sociedade privilegiando uma camada da população em detrimento de outra, tornando as cidades territórios onde o conflito é constante e inerente, todavia também de onde as próprias soluções para os problemas podem surgir.
A nossa urbanização pretérita tem uma origem de séculos atrás. Embora durante a maior parte da nossa história tenhamos sido um país de caráter agrícola, a cidade de Salvador viveu um processo notável de urbanização, comandando a primeira rede urbana das Américas junto com Cachoeira, Santo Amaro e Nazaré.
As cidades, a princípio, significavam mais um ambiente onde se afirmava o poder do que um espaço de moradia. Somente a partir do século XVIII, no entanto, os senhores de engenho e os fazendeiros passam a dedicar mais tempo nela, retornando às suas terras somente no período de corte da cana ou de sua moenda (BASTIDE, 1978). O papel das cidades era de sediar o capital comercial e de garantir o funcionamento da burocracia pública.
O que tínhamos como um elemento comum às cidades é a falta de conexão entre elas, prevalecendo uma economia natural voltada à extração de minerais ou à agricultura comercial. Somente no século XIX, com a produção de café em São Paulo serão viabilizados investimentos voltados à implantação de estradas de ferro, melhoria dos portos e de meios de comunicação, dando fluidez a essa parte do território brasileiro. De maneira geral, segue uma tradição de melhoramentos públicos regionalizados no país, a partir da sua dinâmica econômica.
Até o início do século XX, teremos poucas mudanças em relação à taxa de urbanização. De 1925 a 1940, a taxa de ocupação no setor secundário passou de 12% para 10,1%. É a partir de 1940 que a lógica da industrialização vai prevalecer, momento em que temos uma forte redução dos empregados no setor primário, de 64% neste ano para 53,7% em 1960. Nesse período, o setor terciário saltou de 25,9% para 33,2%, enquanto o secundário chegou a 13,1%.
A lógica das atividades industriais introduz um sistema social complexo não restrito apenas à produção, mas à formação de um mercado nacional, dotando o território nacional de equipamentos para integrá-lo, ampliando o consumo e ativando um processo mais consistente de urbanização, saindo da escala regional para a escala nacional.
Entre 1940 e 1980, opera-se uma inversão quanto ao lugar onde as pessoas moram, passando de 26,35% para 68,86% a taxa de urbanização no país. Esse foi um período de explosão demográfica, o que o torna ainda mais relevante para compreensão do momento. Com a lógica industrial, a relação natural com o meio perdeu espaço para a confluência de uma nova lógica: a do meio técnico-científico.
A mecanização do território opera um processo de construção e reconstrução do espaço urbano em larga escala, numa associação direta com os novos padrões de acumulação capitalista, que precisa expandir e atingir novas áreas. A informação, de maneira abrangente, é o motor dessa articulação do território, dotado de equipamento para facilitar sua circulação. São construídas estradas de ferro e estrada de rodagem conectando entre si os lugares mais distantes do país.
Há duas esferas que se interpõem nesse processo: um psicológico (psicoesfera) e outro tecnológico (tecnoesfera). A tecnoesfera traduz numa substituição do meio natural construindo um dado necessário e dominante sobre o território. Sua predominância cria a psicoesfera, fornecendo regras objetivas de racionalidade e de uma imaginário que, assim como a tecnoesfera, são construídas em lugares longíquos. Ela é local, mas produto de um tipo de sociedade e inspirada em regras cujas dimensões são muito mais complexas.
Toda conduta passa a ser dotada de razão e inteligência, em contraste com os espaços opacos, não racionais ou incompletamente racionais. Há uma hierarquização entre regiões com conteúdos e saber e regiões desprovidas de saber, em que uma manda e outra obedece. Isso está simbolizado no filme de Eric Rohmer, A Árvore, o Prefeito e a Mediateca (1993), numa discussão entre o prefeito e sua namorada sobre o porquê do novo espaço espaço de lazer que a prefeitura pretende construir ser tão dotada de funcionalidade, sem muito espaço para abstração ou criatividade.
domingo, 7 de setembro de 2014
(1982) Um Casamento Perfeito - Eric Rohmer
Dez anos após "Amor à Tarde" (1972), Eric Rohmer nos brinda com outro belíssimo filme em que aborda o envolvimento e o interesse sob o paradigma da razão. Se em Amor à Tarde temos a personagem Chloé deliberadamente direcionada a seduzir Frédréric, por uma convicção beirando a lógica e a objetividade desde que o visita pela primeira vez em seu escritório numa tarde, em Um Casamento Perfeito o olhar é agora conduzido pela perspectiva feminina.
Após vários envolvimentos fracassados com homens comprometidos, Sabine (Béatrice Romand) agora quer casar. A sensação que ela transmite diante dessa vontade é a de alguém toscamente inocente e infantil. Diante de toda e qualquer decepção, é nesse refúgio que ela encontra serenidade, seja no término do relacionamento com o pintor com quem mantém um caso, seja diante da preocupações aventadas sobre si por sua mãe ou mesmo da iminente perda do emprego.
Durante uma festa para a qual se dirige de maneira desinteressada, é apresentada ao jovem advogado, Edmond (André Dussolier), por sua amiga e anfitrã do evento, Clarisse (Arielle Dombasle), que é prima do rapaz. Com requisitos que considera essenciais a um bom marido, Sabine é estimulada por Clarisse a procurá-lo, insinuando um "amor à primeira vista" entre os dois, seja lá o que isso signifique. Há uma dualidade do real que percorre todo o filme e que envolve a objetividade e a subjetividade dos personagens.
Enquanto Sabine vive uma ilusão e começa absurdamente a até imaginar como será sua vida enquanto dona do lar, Edmond, sem ter ideia do passa pela cabeça de sua pretendente, mantém um distanciamento seguro e frio de suas pretensões. Ela quer cuidar de uma casa que possa chamar de sua e defende essa condição como uma divisão de tarefas, uma complementaridade da relação, e não uma posição subordinada ou inferior em relação ao marido. Num dos diálogos do filme, ela questiona seu amigo que afirma que, nessa situação, ela será sustentada:
- É incrível! Mulher que fica em casa agora é prostituta?
- Não, mas é depreciada.
- E aquela que passa o dia ouvindo berro de criança mimada, não é? É você que está ultrapassado! Para você, a relação entre homem e mulher é de dominação. O casamento é uma associação na qual cada um faz o que sabe.
Com esse temperamento forte, idealista e decidido, ela insiste ao máximo uma aproximação duradoura com Edmond, chegando a ligar várias vezes para ele e a comemorar seu aniversário com uma festa somente com o pretexto de se aproximar do seu pretendente.
O desfecho, embora previsível, não deixa de ser sedutor e elegante. A natureza humana é repleta dessa contradição entre o real e o aparente, entre o que gostaríamos que fosse e as coisas como elas realmente são. Essa é, na minha opinião, a melhor maneira de interpretar Um Casamento Perfeito.
Durante uma festa para a qual se dirige de maneira desinteressada, é apresentada ao jovem advogado, Edmond (André Dussolier), por sua amiga e anfitrã do evento, Clarisse (Arielle Dombasle), que é prima do rapaz. Com requisitos que considera essenciais a um bom marido, Sabine é estimulada por Clarisse a procurá-lo, insinuando um "amor à primeira vista" entre os dois, seja lá o que isso signifique. Há uma dualidade do real que percorre todo o filme e que envolve a objetividade e a subjetividade dos personagens.
Enquanto Sabine vive uma ilusão e começa absurdamente a até imaginar como será sua vida enquanto dona do lar, Edmond, sem ter ideia do passa pela cabeça de sua pretendente, mantém um distanciamento seguro e frio de suas pretensões. Ela quer cuidar de uma casa que possa chamar de sua e defende essa condição como uma divisão de tarefas, uma complementaridade da relação, e não uma posição subordinada ou inferior em relação ao marido. Num dos diálogos do filme, ela questiona seu amigo que afirma que, nessa situação, ela será sustentada:
- É incrível! Mulher que fica em casa agora é prostituta?
- Não, mas é depreciada.
- E aquela que passa o dia ouvindo berro de criança mimada, não é? É você que está ultrapassado! Para você, a relação entre homem e mulher é de dominação. O casamento é uma associação na qual cada um faz o que sabe.
Com esse temperamento forte, idealista e decidido, ela insiste ao máximo uma aproximação duradoura com Edmond, chegando a ligar várias vezes para ele e a comemorar seu aniversário com uma festa somente com o pretexto de se aproximar do seu pretendente.
O desfecho, embora previsível, não deixa de ser sedutor e elegante. A natureza humana é repleta dessa contradição entre o real e o aparente, entre o que gostaríamos que fosse e as coisas como elas realmente são. Essa é, na minha opinião, a melhor maneira de interpretar Um Casamento Perfeito.
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(1972) Amor à Tarde - Eric Rohmer
Minha introdução na vasta obra do diretor francês Eric Rohmer (dirigiu 27 filmes a partir de À Sonata de Kreutzer até Os Amores de Atrée e Céladon) é firmada através dos personagens principais, profundos e complexos, da obra Amor à Tarde, de 1972. No primeiro plano, temos Frédéric (Bernard Verley), sócio de uma pequena firma parisiense, casado com Helene (Françoise Verley), uma professora com quem acabara de ter o segundo filho. Logo de cara, mesmo sem conhecer muito do estilo adotado pelo diretor, somos transportados a um filme que explora, dentre outros, o íntimo de uma das mais angustiantes, enigmáticas e impenetráveis questões humanas: o desejo sexual.
Em uma das primeiras cenas, a caminho do trabalho, deslocando-se dentro do trem e envolto em seus pensamentos, Frédréric admira uma jovem mulher e põe-se a admitir que, a partir do seu casamento, passou a "achar todas as mulheres bonitas", admirando seus gestos e tentando reencontrar o mistério que possuíam antes. No entanto, os desejos do protagonista não passam disso, de admiração e contemplação. Na cena a seguir, sem grande importância no conjunto dessa obra, mas de grande valor na filmografia do diretor francês, Frédéric, enquanto caminha no mar de gente de Paris, exalta a cidade grande em detrimento do campo e da periferia, que o oprimem.
A vida deste personagem parece seguir um roteiro constante e inabalável até o dia em que a ex-amante de um grande amigo seu, Chloé (Zouzou), começa a visitá-lo regularmente com o propósito de seduzi-lo. Ela, com toda a fragilidade, inconstância e instabilidade que vai demonstrando a cada visita, parece situar-se numa oposição a Helene. Chloé coleciona diferentes empregos, residências e amores (um tanto confusos e utilitaristas). Muito semelhante à oposição entre as personagens Lou e Lucie de Antes do Inverno (2013), mas sem o desfecho trágico desta obra.
A partir desse reencontro, o enredo, em sua maior parte, abordará o desdobramento da relação entre os dois, a partir do mistério, da cumplicidade e do desejo que dão forma à excitação dos encontros, cada vez mais esperados e necessários para Frédréric, que envolve-se gradativamente por Chloé. Como é da característica do diretor, não poderiam faltar discussões filosóficas e existenciais, como quando ambos discutem sobre a poligamia e o protagonista descreve essa prática como "escravidão da mulher". "Não se a mulher também for adepta", ela responde, sucedida por Frédréric que diz que se daria bem numa sociedade assim, mas na atual, com as regras com as quais deve viver, prefere ser monogâmico a basear a vida em mentiras.
Há uma certa racionalidade no comportamento afetivo dos personagens, os quais, diferentemente do senso comum, lidam de maneira mais natural e livre com um tema que costuma oprimir consideravelmente a maioria das relações conjugais.
O que poderia ser uma desvantagem para o filme aos olhos da grande maioria das pessoas, as quais estão acostumadas à velocidade da nossa sociedade atual - em que tudo é instantâneo e efêmero -, que é a narrativa lenta somada a diálogos longos e inteligentes, é, na minha opinião, um diferencial a ser aproveitado em Amor à Tarde. Sem a profundidade alcançada pelo diretor, seria inevitável recair em esteriótipos e conclusões simplistas sobre os personagens, como é rotineiro no cinema em decorrência do tempo exíguo para lidar com tantas variáveis na realização de uma obra.
A contradição da relação entre Frédréric e Helene, quase burocrática, na qual ambos pouco têm a conhecer um do outro, e entre Frédréric e Chloé, cheia de energia e de novidades, é típica da existência humana. A partir do momento em que se rompem as ilusões e caem as máscaras, o indivíduo de carne e osso, não aquele idealizado, ganha materialidade e ressignificação.
Um filme a se contemplar, refletir e assistir sem pressa, sorvendo cada parte e observando a nós mesmos através dele.
Em uma das primeiras cenas, a caminho do trabalho, deslocando-se dentro do trem e envolto em seus pensamentos, Frédréric admira uma jovem mulher e põe-se a admitir que, a partir do seu casamento, passou a "achar todas as mulheres bonitas", admirando seus gestos e tentando reencontrar o mistério que possuíam antes. No entanto, os desejos do protagonista não passam disso, de admiração e contemplação. Na cena a seguir, sem grande importância no conjunto dessa obra, mas de grande valor na filmografia do diretor francês, Frédéric, enquanto caminha no mar de gente de Paris, exalta a cidade grande em detrimento do campo e da periferia, que o oprimem.
A vida deste personagem parece seguir um roteiro constante e inabalável até o dia em que a ex-amante de um grande amigo seu, Chloé (Zouzou), começa a visitá-lo regularmente com o propósito de seduzi-lo. Ela, com toda a fragilidade, inconstância e instabilidade que vai demonstrando a cada visita, parece situar-se numa oposição a Helene. Chloé coleciona diferentes empregos, residências e amores (um tanto confusos e utilitaristas). Muito semelhante à oposição entre as personagens Lou e Lucie de Antes do Inverno (2013), mas sem o desfecho trágico desta obra.
A partir desse reencontro, o enredo, em sua maior parte, abordará o desdobramento da relação entre os dois, a partir do mistério, da cumplicidade e do desejo que dão forma à excitação dos encontros, cada vez mais esperados e necessários para Frédréric, que envolve-se gradativamente por Chloé. Como é da característica do diretor, não poderiam faltar discussões filosóficas e existenciais, como quando ambos discutem sobre a poligamia e o protagonista descreve essa prática como "escravidão da mulher". "Não se a mulher também for adepta", ela responde, sucedida por Frédréric que diz que se daria bem numa sociedade assim, mas na atual, com as regras com as quais deve viver, prefere ser monogâmico a basear a vida em mentiras.
Há uma certa racionalidade no comportamento afetivo dos personagens, os quais, diferentemente do senso comum, lidam de maneira mais natural e livre com um tema que costuma oprimir consideravelmente a maioria das relações conjugais.
O que poderia ser uma desvantagem para o filme aos olhos da grande maioria das pessoas, as quais estão acostumadas à velocidade da nossa sociedade atual - em que tudo é instantâneo e efêmero -, que é a narrativa lenta somada a diálogos longos e inteligentes, é, na minha opinião, um diferencial a ser aproveitado em Amor à Tarde. Sem a profundidade alcançada pelo diretor, seria inevitável recair em esteriótipos e conclusões simplistas sobre os personagens, como é rotineiro no cinema em decorrência do tempo exíguo para lidar com tantas variáveis na realização de uma obra.
A contradição da relação entre Frédréric e Helene, quase burocrática, na qual ambos pouco têm a conhecer um do outro, e entre Frédréric e Chloé, cheia de energia e de novidades, é típica da existência humana. A partir do momento em que se rompem as ilusões e caem as máscaras, o indivíduo de carne e osso, não aquele idealizado, ganha materialidade e ressignificação.
Um filme a se contemplar, refletir e assistir sem pressa, sorvendo cada parte e observando a nós mesmos através dele.
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
Gramsci e as eleições no Brasil
No próximo mês, o Brasil elegerá seu/sua próximo/a presidente, deputados federais, deputados
estaduais e senadores. Será uma eleição atípica em relação às anteriores, dado que a polarização das últimas eleições não deverá se repetir. Marina Silva, candidata pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), alçada à posição após a morte trágica do ex-governador Eduardo Campos, figura na vice-liderança da corrida presidencial, atrás da atual presidente Dilma Rousseff, do PT (Partido dos Trabalhadores).
É possível se compreender de maneira relacional a teoria de Gramsci sobre o Estado dentro desse contexto de disputa política proporcionado pelas eleições gerais no país. Quando o intelectual italiano, falecido em 1937, formulou sua teoria política, ele identificou o Estado como a conjunção de dois tipos de "sociedades": a política e a civil. Na primeira, se afirma a coerção em sentido estrito, compondo-se por meio de leis e pela polícia. Os aparelhos repressivos de Estado seriam utilizados de forma mais recorrente onde a sociedade civil é mais escassa, lugares onde, para Gramsci, a formação social ainda é de tipo "oriental".
A sociedade civil, por sua vez, é o espaço onde o consenso se forma. Ela é portadora material da hegemonia e está localizada entre o Estado em sentido restrito (ou sociedade política) e a infraestrutura econômica. Há na sociedade civil tanto uma autonomia frente ao Estado quanto a difusão de ideologias, de uma vontade coletiva. Ela dá substância à explicação de Gramsci sobre o fracasso do processo revolucionário na Europa, diferentemente do que aconteceu na Rússia. Como neste país a sociedade civil era débil, a única trincheira a ser disputa era a da própria sociedade política. Num país onde a sociedade civil é desenvolvida, o processo revolucionário dar-se-ia de maneira mais lenta e complexa.
A condução do Estado em sociedades mais desenvolvidas e plurais requer, portanto, organismos que sejam portadores de uma vontade coletiva e que deem sedimentação a um dado consenso. Esses organismos, chamados de aparelhos privados de hegemonia, podem ser de vários tipos, como os sindicatos, as associações, os partidos políticos, a mídia, a Igreja, jornais, revistas, redes de televisão, dentre outros.
O processo político brasileiro e o fenômeno "Marina Silva"
Com um terço do eleitorado brasileiro (33% de acordo com a última pesquisa do Ibope), Marina Silva está bem à frente da sua concorrente, Dilma Rousseff (que tem 37% segundo a mesma pesquisa), na preferência dos eleitores com renda acima dos 5 salários mínimos (37% a 28%). Dilma lidera entre os mais pobres (49% a 27%). Ainda, entre os eleitores mais jovens (42% a 31%), a partir da pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, a preferência de 42% é pela candidata pessebista.
Até poucos meses atrás, Marina envidava todos os seus esforços para a constituição de seu partido, o Rede Sustentabilidade. Não houve, apesar de toda a energia aí empreendida, êxito na sua empreitada, situação que provocou uma alteração de rumo em prol de uma composição com Eduardo Campos. Com a morte deste, a substituição de Marina alçou de maneira espetacular a preferência de uma parcela de indecisos e da classe média.
A candidatura da ambientalista é vista por alguns analistas como a herdeira dos movimentos de junho de 2013, momento em que uma considerável massa de jovens, principalmente da classe média, foram às ruas protestar por melhores condições de vida e negando o protagonismo da política institucional, ocasião em que a aprovação popular dos governos em todos os níveis desabou.
Como vimos no artigo anterior, com base na formulação sobre o Estado e o urbano no Brasil, de Francisco de Oliveira, a classe média, a partir do momento em que ganha força e consistência diante do capitalismo monopolista que emerge com o Estado de bem-estar europeu, permeada por uma divisão do trabalho que dá vazão a um segmento "improdutivo", passa a se tornar cada vez mais encorpada. Quando a ditadura anula a organização no ambiente econômico dos trabalhadores e os exclui politicamente, os setores de classe média, agora muito mais numerosos, se apropriam politicamente desse momento e desequilibram a relação entre Estado e o urbano, passando a ser atendidos de forma muito superior pelas políticas públicas quando em comparação com os mais pobres.
Até 2003, esse desequilíbrio foi constante. Somente com o governo Lula, a miséria social no país é qualitativamente reduzida. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 2003 e 2009, a pobreza no Brasil caiu 36,5%, totalizando 27,9 milhões de pessoas. Até o final do governo, foi possível construir uma pactuação social em que todos saíram ganhando, dado que, em virtude da própria economia em nível internacional, o PIB cresceu como há anos não crescia.
No governo Dilma, as prioridades dirigidas aos mais pobres foram mantidas. A grossíssimo modo, é possível dizer que as elites mantiveram intactos seus ganhos desde 2003 e assim continuou no atual governo, apesar de que, diante de um crescimento econômico precário nos últimos anos, alguém precisou perder para manter as conquistas dos setores mais privilegiados e dos mais pobres. Esse "alguém" foi a classe média, que, como já se demonstrou, é um protagonista político de grande peso nas cidades grandes do país.
É possível se demonstrar isso pelos dados do Datafolha divulgados no final de agosto. Nas cidades com mais de 500 mil habitantes, a preferência por Marina é clara (37% contra 27% de Dilma). As candidata do PT e do PSB estão empatadas tecnicamente nas cidades entre 50 a 200 mil habitantes, sendo que Dilma ganha consideravelmente bem (44% contra 29% de Marina) nas cidades com até 50 mil habitantes. O voto em Marina é, portanto, na minha opinião, um voto de protesto às prioridades evocadas pelo governo do PT, as quais, durante a gestão de Dilma, se manifestaram de forma mais forte sobre o governo. São grandes as chances de vitória dela, apesar de que, como pretendo demonstrar a seguir, suas chances de governabilidade sem grandes concessões são mínimas.
Poder e sociedade civil
Dentre todos as organizações da sociedade civil listadas anteriormente, a mídia é a que joga o maior peso. Em Porto Alegre, costumam chamar o Orçamento Participativo de quarto Poder, listado ao lado do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo. No entanto, ninguém exerce melhor um efetivo poder paralelo sobre a sociedade política do que os grandes conglomerados da comunicação. Portando um projeto próprio de poder, o que significa dentre outros, no Brasil, debilitar a política como instrumento de mudança, conter a democratização política e difundir os valores do livre mercado, a mídia brasileira, destacando-se a Rede Globo, a Veja e a Folha de São Paulo, atuaram como verdadeiros partidos políticos em franca artilharia contra o governo federal.
Como foi possível, diante de uma artilharia pesada da grande mídia, resistir aos ataques, governar e reeleger por duas vezes o projeto eleitoral conduzido pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados? Graças à força conquistada pelo PT na sociedade civil, como a direção sobre a CUT (Central Única de Trabalhadores), sobre milhares de sindicatos país afora, com a presença forte e majoritária no âmbito das instituições superiores de ensino, nas associações e organizações não-governamentais, nos movimentos "pós-materialistas" e também na própria rede de partidos políticos sobre os quais o PT atuou como força dirigente.
Qual foi a alternativa real ao PT durante todo esse período? O PSDB, articulado principalmente pela grande mídia e pelos partidos-satélites ao seu projeto, como o PPS e o DEM. Nenhum outro conjunto de organizações presentes na sociedade civil foi portador real e efetivo de um projeto alternativo de país, o que demonstra que o projeto eleitoral de Marina Silva, longe de repousar em uma sólida sociabilidade política, é expressão da recusa, da rejeição de parcelas amplas da sociedade, localizadas especialmente na classe média, à atual mandatária. Aécio, por ser expressão de um projeto de país que já mostrou suas incongruências e fragilidades, não foi capaz de dar rosto e voz a esses anseios.
No entanto, se o PT foi capaz de resistir à ofensiva midiática graças a uma sociedade civil forte e articulada em todos os níveis federativos, a candidatura de Marina está longe de oferecer essa possibilidade. Se vencer, tornando-se presidente, ela não teria o mesmo capital social do Partido dos Trabalhadores para conter as pressões que surgirão do capital financeiro e do oligopólio midiático. Dessa maneira, ela já acenou aos bancos que irá garantir a autonomia do Banco Central, medida almejada pelo setor financeiro que detém altas taxas de lucro com o que se paga de juros no país.
Sem falar que, sem uma base política ampla no Congresso Nacional, não será possível à atual candidata do PSB fazer as reformas que o país precisa, como a tributária e a política. Quanto ao Legislativo, as concessões precisariam ser ainda maiores, dado que, diferentemente do PT que assumiu o governo em 2003, a bancada de parlamentares eleitos pelo PSB é muito maior. E o partido sequer é o de Marina Silva.
Desse modo, Gramsci, mesmo desenvolvendo a maior parte da sua teoria em condições precárias (foi preso em 1926) e passadas algumas décadas desde seu falecimento, mostra, por meio de poderosos instrumentos de análise política, a atualidade de suas observações sobre o processo político e social quando analisada a sociedade brasileira da segunda década do século XXI.
Gramsci e a atualidade de suas reflexões para compreender o Brasil. |
É possível se compreender de maneira relacional a teoria de Gramsci sobre o Estado dentro desse contexto de disputa política proporcionado pelas eleições gerais no país. Quando o intelectual italiano, falecido em 1937, formulou sua teoria política, ele identificou o Estado como a conjunção de dois tipos de "sociedades": a política e a civil. Na primeira, se afirma a coerção em sentido estrito, compondo-se por meio de leis e pela polícia. Os aparelhos repressivos de Estado seriam utilizados de forma mais recorrente onde a sociedade civil é mais escassa, lugares onde, para Gramsci, a formação social ainda é de tipo "oriental".
A sociedade civil, por sua vez, é o espaço onde o consenso se forma. Ela é portadora material da hegemonia e está localizada entre o Estado em sentido restrito (ou sociedade política) e a infraestrutura econômica. Há na sociedade civil tanto uma autonomia frente ao Estado quanto a difusão de ideologias, de uma vontade coletiva. Ela dá substância à explicação de Gramsci sobre o fracasso do processo revolucionário na Europa, diferentemente do que aconteceu na Rússia. Como neste país a sociedade civil era débil, a única trincheira a ser disputa era a da própria sociedade política. Num país onde a sociedade civil é desenvolvida, o processo revolucionário dar-se-ia de maneira mais lenta e complexa.
A condução do Estado em sociedades mais desenvolvidas e plurais requer, portanto, organismos que sejam portadores de uma vontade coletiva e que deem sedimentação a um dado consenso. Esses organismos, chamados de aparelhos privados de hegemonia, podem ser de vários tipos, como os sindicatos, as associações, os partidos políticos, a mídia, a Igreja, jornais, revistas, redes de televisão, dentre outros.
O processo político brasileiro e o fenômeno "Marina Silva"
Com um terço do eleitorado brasileiro (33% de acordo com a última pesquisa do Ibope), Marina Silva está bem à frente da sua concorrente, Dilma Rousseff (que tem 37% segundo a mesma pesquisa), na preferência dos eleitores com renda acima dos 5 salários mínimos (37% a 28%). Dilma lidera entre os mais pobres (49% a 27%). Ainda, entre os eleitores mais jovens (42% a 31%), a partir da pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, a preferência de 42% é pela candidata pessebista.
Até poucos meses atrás, Marina envidava todos os seus esforços para a constituição de seu partido, o Rede Sustentabilidade. Não houve, apesar de toda a energia aí empreendida, êxito na sua empreitada, situação que provocou uma alteração de rumo em prol de uma composição com Eduardo Campos. Com a morte deste, a substituição de Marina alçou de maneira espetacular a preferência de uma parcela de indecisos e da classe média.
A candidatura da ambientalista é vista por alguns analistas como a herdeira dos movimentos de junho de 2013, momento em que uma considerável massa de jovens, principalmente da classe média, foram às ruas protestar por melhores condições de vida e negando o protagonismo da política institucional, ocasião em que a aprovação popular dos governos em todos os níveis desabou.
Como vimos no artigo anterior, com base na formulação sobre o Estado e o urbano no Brasil, de Francisco de Oliveira, a classe média, a partir do momento em que ganha força e consistência diante do capitalismo monopolista que emerge com o Estado de bem-estar europeu, permeada por uma divisão do trabalho que dá vazão a um segmento "improdutivo", passa a se tornar cada vez mais encorpada. Quando a ditadura anula a organização no ambiente econômico dos trabalhadores e os exclui politicamente, os setores de classe média, agora muito mais numerosos, se apropriam politicamente desse momento e desequilibram a relação entre Estado e o urbano, passando a ser atendidos de forma muito superior pelas políticas públicas quando em comparação com os mais pobres.
Até 2003, esse desequilíbrio foi constante. Somente com o governo Lula, a miséria social no país é qualitativamente reduzida. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 2003 e 2009, a pobreza no Brasil caiu 36,5%, totalizando 27,9 milhões de pessoas. Até o final do governo, foi possível construir uma pactuação social em que todos saíram ganhando, dado que, em virtude da própria economia em nível internacional, o PIB cresceu como há anos não crescia.
No governo Dilma, as prioridades dirigidas aos mais pobres foram mantidas. A grossíssimo modo, é possível dizer que as elites mantiveram intactos seus ganhos desde 2003 e assim continuou no atual governo, apesar de que, diante de um crescimento econômico precário nos últimos anos, alguém precisou perder para manter as conquistas dos setores mais privilegiados e dos mais pobres. Esse "alguém" foi a classe média, que, como já se demonstrou, é um protagonista político de grande peso nas cidades grandes do país.
É possível se demonstrar isso pelos dados do Datafolha divulgados no final de agosto. Nas cidades com mais de 500 mil habitantes, a preferência por Marina é clara (37% contra 27% de Dilma). As candidata do PT e do PSB estão empatadas tecnicamente nas cidades entre 50 a 200 mil habitantes, sendo que Dilma ganha consideravelmente bem (44% contra 29% de Marina) nas cidades com até 50 mil habitantes. O voto em Marina é, portanto, na minha opinião, um voto de protesto às prioridades evocadas pelo governo do PT, as quais, durante a gestão de Dilma, se manifestaram de forma mais forte sobre o governo. São grandes as chances de vitória dela, apesar de que, como pretendo demonstrar a seguir, suas chances de governabilidade sem grandes concessões são mínimas.
Poder e sociedade civil
Dentre todos as organizações da sociedade civil listadas anteriormente, a mídia é a que joga o maior peso. Em Porto Alegre, costumam chamar o Orçamento Participativo de quarto Poder, listado ao lado do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo. No entanto, ninguém exerce melhor um efetivo poder paralelo sobre a sociedade política do que os grandes conglomerados da comunicação. Portando um projeto próprio de poder, o que significa dentre outros, no Brasil, debilitar a política como instrumento de mudança, conter a democratização política e difundir os valores do livre mercado, a mídia brasileira, destacando-se a Rede Globo, a Veja e a Folha de São Paulo, atuaram como verdadeiros partidos políticos em franca artilharia contra o governo federal.
Como foi possível, diante de uma artilharia pesada da grande mídia, resistir aos ataques, governar e reeleger por duas vezes o projeto eleitoral conduzido pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados? Graças à força conquistada pelo PT na sociedade civil, como a direção sobre a CUT (Central Única de Trabalhadores), sobre milhares de sindicatos país afora, com a presença forte e majoritária no âmbito das instituições superiores de ensino, nas associações e organizações não-governamentais, nos movimentos "pós-materialistas" e também na própria rede de partidos políticos sobre os quais o PT atuou como força dirigente.
Qual foi a alternativa real ao PT durante todo esse período? O PSDB, articulado principalmente pela grande mídia e pelos partidos-satélites ao seu projeto, como o PPS e o DEM. Nenhum outro conjunto de organizações presentes na sociedade civil foi portador real e efetivo de um projeto alternativo de país, o que demonstra que o projeto eleitoral de Marina Silva, longe de repousar em uma sólida sociabilidade política, é expressão da recusa, da rejeição de parcelas amplas da sociedade, localizadas especialmente na classe média, à atual mandatária. Aécio, por ser expressão de um projeto de país que já mostrou suas incongruências e fragilidades, não foi capaz de dar rosto e voz a esses anseios.
No entanto, se o PT foi capaz de resistir à ofensiva midiática graças a uma sociedade civil forte e articulada em todos os níveis federativos, a candidatura de Marina está longe de oferecer essa possibilidade. Se vencer, tornando-se presidente, ela não teria o mesmo capital social do Partido dos Trabalhadores para conter as pressões que surgirão do capital financeiro e do oligopólio midiático. Dessa maneira, ela já acenou aos bancos que irá garantir a autonomia do Banco Central, medida almejada pelo setor financeiro que detém altas taxas de lucro com o que se paga de juros no país.
Sem falar que, sem uma base política ampla no Congresso Nacional, não será possível à atual candidata do PSB fazer as reformas que o país precisa, como a tributária e a política. Quanto ao Legislativo, as concessões precisariam ser ainda maiores, dado que, diferentemente do PT que assumiu o governo em 2003, a bancada de parlamentares eleitos pelo PSB é muito maior. E o partido sequer é o de Marina Silva.
Desse modo, Gramsci, mesmo desenvolvendo a maior parte da sua teoria em condições precárias (foi preso em 1926) e passadas algumas décadas desde seu falecimento, mostra, por meio de poderosos instrumentos de análise política, a atualidade de suas observações sobre o processo político e social quando analisada a sociedade brasileira da segunda década do século XXI.
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
A urbanização brasileira
Bairro do Recife, século XIX. Fonte: URB |
Palavras-chave: Estado, urbanização, autarquia da cidade, autarquia do campo, classe média, capitalismo monopolista
A urbanização brasileira
Quando visitamos as grandes capitais país afora, dificilmente nos damos conta da força da transformação pelas quais as cidades atravessaram por aqui ao longo de mais de cem anos quando, desde o século XIX, começaram a se urbanizar. Os estudos sociológicos costumam restringir à industrialização a explicação para o fenômeno da urbanização, mas essa é uma interpretação equivocada, dado que, a exemplo da foto ao lado, datada do século XIX, as cidades, com determinadas funções no âmbito da divisão internacional do trabalho, não apenas sediavam a burocracia pública, como também mediavam a circulação de mercadorias, como sede do capital comercial. Elas já concentravam poder, mesmo porque boa parte dos donos de engenho moravam nas cidades, retornando às suas produções somente na época da moenda.
A urbanização deu-se em uma parte, reduzida, claro, de cidades brasileiras e, tal como se deu no país, foi consequência da nossa débil inserção na divisão internacional do trabalho. A parte que nos coube naquele momento era a de ser um país monocultor voltado à exportação. Grandes áreas de terra no Nordeste, por exemplo, foram destinadas à produção da cana de açúcar, a qual foi um dos primeiros produtos destinados à exportação desde a colonização. As atribuições mais importantes das poucas, mas importantes cidades, eram a de realizar a mediação da produção com o mercado internacional e de dar vida à burocracia estatal.
Lógico que, a partir da década de 30, quando o Estado passa a conduzir um projeto de desenvolvimento articulado, introduzindo a substituição de importações e investindo como nunca na indústria, a qualidade da urbanização é remodelada e tem-se uma nova configuração no crescimento e no paradigma das cidades no país. A forma como se produzia mercadorias, sempre em vistas à exportação, impedia a articulação dos centros produtivos nacionais. As cidades eram desarticuladas entre si e voltadas para a metrópole.
Um registro da cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX serve como referencial para a intensa transformação pela qual a urbanização reestruturou a capital paulista e lhe fez de uma cidade de pouca significância à maior de toda a América Latina. É o momento em que saímos de uma "autarquia o campo" para uma "autarquia das cidades" (OLIVEIRA, 1980)
Autarquia do campo x Autarquia das cidades
O sentido de autarquia remete à ideia de poder absoluto. Francisco de Oliveira o utiliza para situar campo e cidade no processo de conformação do novo espaço urbano que emerge com a industrialização. Se antes a divisão social do trabalho em torno do campo repercutia sobre uma cidade pobre de urbanização, prevalecendo de maneira quase exclusiva a produção agrária, isso irá demandar, no momento da industrialização, uma intensa urbanização nas cidades para dotá-las da infraestrutura necessária para as novas relações de produção.
É uma relação diferente da que se desenvolveu na Europa durante a mesma transição, visto que as cidades europeias exerciam um papel, estavam integradas a uma divisão social do trabalho, o que moldou sua urbanização de maneira menos artificial e impactante. Tínhamos, por exemplo, artesãos e camponeses, e mesmo o campo atuou de forma complementar às cidades no processo de surgimento e consolidação da indústria em países como Inglaterra e França.
Dessa maneira, para poder atingir taxas satisfatórias, a industrialização brasileira precisava incorporar níveis muito elevados de urbanização. Nas cidades de Paulista, em Pernambuco, e em Votorantim, em São Paulo, as indústrias tiveram não somente que criar o ambiente fabril, mas as próprias residências onde os operários iriam morar. Os índices de urbanização se elevavam acima do próprio crescimento da força de trabalho empregada nas atividades industriais.
E o Estado?
O Estado nesse contexto atuou para ordenar as relações de produção. A partir da década de 30, entra em cena a regulamentação das relações entre capital e trabalho. A Revolução Burguesa, descrita por Carlos Nelson Coutinho como uma revolução passiva (muda a estrutura sem mexer nos privilégios), incorpora os elementos econômicos no processo de criação das leis, mas fecha os olhos às liberdades políticas e individuais, dado que os sindicatos foram controlados pelo aparelho estatal e os direitos políticos consistiriam numa farsa até 1945, quando Getúlio é deposto e novas eleições são realizadas.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, a classe trabalhadora em toda Europa havia saído fortalecida, com os sindicatos muito presentes na vida política, pressionando por mais direitos e melhoria nas condições de vida, enquanto, no Leste Europeu, a URSS ampliava seu campo de influência sobre vários países. Inspirados nas políticas de John Maynard Keynes, os países centrais do capitalismo vão aplicar parte considerável do orçamento para custear a reprodução da força de trabalho, melhorando consistentemente a qualidade de vida dos seus trabalhadores.
As novas políticas sociais e de pleno emprego implementados nestes países elevam o custo da força de trabalho e das mercadorias e forçam um movimento de industrialização rumo à periferia, via os capitais de poderosas empresas internacionais. Esse ambiente econômico, que surge no governo de Juscelino Kubitscheck, dará a origem ao capitalismo monopolista no país, incorporando uma mentalidade nova, integrando a ideia do trabalho improdutivo com o surgimento de uma estrutura hierárquica que introduz a figura de gerentes, executivos, etc.
Com essa nova concepção inserida no contexto do processo produtivo, há uma profunda mudança na relação entre o Estado e o urbano, pois se altera o padrão do próprio setor terciário, que antes mais horizontal, verá a expansão de uma expressiva parcela cuja melhor remuneração dá origem ao que a sociologia denomina como "classe média". Pelo seu peso social, força o Estado a adotar políticas públicas que lhe dão prioridade, secundarizando as demandas e necessidades das classes populares.
Esse é a formulação-chave para entender a relação entre o Estado e o urbano no Brasil, conforme o pensamento de Francisco de Oliveira. Quer dizer, a partir de 64, com a classe trabalhadora desorganizada politicamente no âmbito da economia e excluída das instituições, ela fica sem instrumento próprio para dar vazão aos seus descontentamentos quanto às prioridades assumidas pelos governos.
Como temos visto nos últimos anos principalmente, mas a partir da década de 80, os trabalhadores assumiram, com a redemocratização, uma série de espaços públicos para pressionar o Estado brasileiro, contestar as prioridades e, em 2003, elegeram um presidente com raízes sociais no sertão nordestino. Alterou-se substancialmente, desde a década de 80, o paradigma político e social que dá feições às reivindicações populares no país, o que redesenhou a próprio relação entre Estado e sociedade, tal como as prioridades orçamentárias. Com voz, os mais pobres passaram a ter vez no processo de planejamento e de execução de políticas que atendem aos seus interesses, embora ainda de maneira insuficiente em relação às suas necessidades.
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Francisco. O Estado e o urbano no Brasil. In: Espaço e debates, nº 6, jul./set., 1982.
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
Introdução à obra de Durkheim
Emile Durkheim (1858-1917) |
Comecei nesta semana um estudo sobre alguns dos principais formuladores do pensamento político e sociológico. A partir do livro de Raymond Aron, iniciei os estudos por Durkheim. O primeiro livro deste autor chama-se Da divisão do trabalho social, de 1893, e nele percebe-se uma forte discussão quanto à relação entre o indivíduo e à coletividade. A chegada ao consenso e a construção de uma sociedade apresentam-se como algumas das questões.
Solidariedade mecânica e solidariedade orgânica
A construção da sociedade através de uma coletividade de indivíduos é possível por dois tipos de solidariedade. Na mais primitiva delas, a solidariedade mecânica, os indivíduos diferenciam-se muito pouco entre si, detendo valores, ideias e sentimentos semelhantes. Na solidariedade orgânica, a sociedade funciona como um organismo vivo, em que cada órgão é diferente, mas interdependente, formando uma unidade harmônica. Todos são indispensáveis.
Consciência coletiva
Segundo Durkheim, a consciência coletiva é "o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma sociedade", o qual "forma um sistema determinado, que tem vida própria". Nas sociedades onde impera a sociedade mecânica, a consciência coletiva exerce um maior poder sobre o indivíduo, orientando a existência a partir dos imperativos e proibições, enquanto nas orgânica, este tem maior liberdade para pensar, agir, querer e crer conforme suas preferências.
Apesar disso, não é o indivíduo que explica o desenvolvimento da sociedade, mas o contrário. Se a solidariedade mecânica precede a orgânica, então é a sociedade que explica os indivíduos. A consciência da individualidade, marca das sociedades mais complexas, resultam da própria divisão do trabalho.
A explicação até então atribuída à divisão do trabalho apregoada como a busca pelas pessoas da felicidade é contestada pelo autor, que julga não ser possível afirmar que as pessoas são mais felizes hoje do que no passado. Segundo ele, é a densidade material, ou seja, o número de indivíduos em relação a uma superfície dada no solo, mais a densidade moral, que amplifica a intensidade das comunicações e trocas entre os indivíduos, que produz a necessidade da diferenciação social. Isso é parte do conceito de Darwin, que afirma que quanto mais numerosos os indivíduos que procuram viver em conjunto, mais intensa é a luta pela vida.
Nessa sociedade que parte para uma diferenciação, o desafio é manter o mínimo de consciência coletiva, à falta da qual a sociedade acabaria se desintegrando.
O suicídio (1897)
Para Durkheim, a divisão do trabalho e a modernidade, apesar de positivos, não trouxeram necessariamente mais felicidade. Ao contrário, há um ambiente de crise econômica, inadaptação dos trabalhadores às suas funções e violência das reivindicações dos indivíduos em relação à coletividade. Os homens se sentem diferentes uns aos outros e cada um deseja obter aquilo a que julga ter direito.
O desafio central é a relação entre o indivíduo e a coletividade. O homem tornou-se consciente demais sobre si para aceitar passivamente os imperativos que lhe recaem. Levando-se em conta que nada pode ser tão individual quanto o sujeito que decide tirar a própria vida, Durkheim busca compreender até que ponto os indivíduos podem ser determinados pela realidade coletiva.
Ele classifica o suicídio a partir de três tipos: o egoísta, o altruísta e o anômico. Este último é o que mais interessa a Durkheim, que busca compreender a relação entre a frequência dos suicídios e as fases do ciclo econômico. Ele chegou à conclusão de que em fases de grande crise, mas também de grandes prosperidade, elevam-se o número de suicídios, enquanto há redução em grandes momentos políticos, como as guerras.
Para o autor, nas sociedades modernas os homens têm grandes expectativas, que vão sendo frustradas pela desproporção entre suas ambições e as realizações. Há um sintoma que é patológico, resultado da desintegração do indivíduo na coletividade.
domingo, 10 de agosto de 2014
[Cinema] Fim de Semana em Paris (2013, Roger Michell) / Lee Weekend
Duas coisas me uniram a esse filme: primeiro, a cidade de Paris como um personagem atraente e sofisticado diante do casal que depois de anos volta a ela e, segundo, o próprio casal de senhores com sua convivência complexa e conflitiva, como é de se esperar após anos de relação conjugal quando as incertezas e angústias da existência vão ganhando contornos mais bem definidos.
Nick (Jim Broadbent) e Meg Burrows (Lindsay Duncan) |
Em Fim de Semana em Paris, Nick (Jim Broadbent) e Meg Burrows (Lindsay Duncan) buscam reencontrar o romance em seu 30º aniversário de casamento. Paris, lugar onde o casal passou sua lua-de-mel, é a cidade para onde regressam. A chegada é atabalhoada, já que Meg ignora as preocupações financeiras de Nick e exige condições melhores para ambos, visto que o próprio hotel onde outrora se hospedaram está agora, para Meg, decadente. É algo como ler Sidney Sheldon aos 12 anos e depois lê-lo aos 25.
A personalidade do casal é destoante e é possível se perguntar, ao longo do enredo, como pessoas com perfis tão diferentes puderam manter uma relação que já dura 30 anos. Nick aparece ao espectador como um sujeito acomodado, conformado e tolerante com a vida. Meg, ao contrário, é uma mulher idealista, cheia de energia e disposição. Seu domínio sobre a relação parece ser inequívoco, tal como sua insatisfação, quando, no restaurante caro, numa noite parisiense, ela afirma querer aprender italiano, tocar piano e dançar tango.
O filme tem uma harmoniosa fotografia contendo lugares realmente belíssimos e cativantes de Paris, como a Torre Eiffel à noite, a Basílica de Sacre Couer (e a visão que se tem da cidade a partir de lá) e o Obelisco. Quando Nick reencontra um velho amigo (Jeff Goldblum) e visita-o numa confraternização entre amigos, no dia seguinte, a história alcança seu clímax e os conflitos ganham repercussão e resolução pública de uma maneira que julgo tolerável, mas pouco coerente.
É um filme leve, gostoso, divertido e agradável.
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domingo, 3 de agosto de 2014
[Literatura] Fantasma Sai de Cena (2004, Philip Roth)
Philip Roth, romancista americano |
Buscando na internet autores contemporâneos de prestígio e reconhecimento (são mais fáceis para quem tem pouco tempo ou prática na arte de garimpar obras), conheci Philip Roth, um romancista americano nascido em 1933, em Newak, Nova Jersey. Roth é considerado um dos maiores escritores dos Estados Unidos da segunda metade do século XX, sendo boa parte de sua obra tematizada pela natureza do desejo sexual e a autocompreensão. Sua ficção é caracterizada pelo monólogo íntimo, com humor e uma energia que alcança o histerismo.
Meu primeiro livro de Roth é Fantasma Sai de Cena (Exit Ghoster, 2004). O personagem principal, Nathan Zuckerman, alter ego de Philip Roth, é um escritor septuagenário que vive nos Montes Berkshire, a 200 quilômetros de Manhattan, levando uma vida isolada cerca de dois anos antes de ter sido diagnosticado com câncer de próstata. 11 anos atrás ele havia se mudado de Nova Iorque após receber uma série de cartas anônimas que continham ameaças dirigidas a si. Ele retornava agora à cidade para realizar uma cirurgia com o propósito de ter um maior controle da esfíncter, dado que desde a prostatectomia (remoção cirúrgica da próstata), ele não conseguia administrar o fluxo de urina e não possuía capacidade de ter relações sexuais.
Zuckerman necessita, após a cirurgia, passar um tempo maior na cidade para acompanhar a evolução do procedimento médico. Do seu quarto de hotel vê um classificado que lhe interessa: um jovem casal de escritores deseja permutar, durante um ano, sua residência, por outra localizada no campo. O escritor liga e marca uma conversa para o quanto antes, desejoso de realizar logo o negócio. Antes disso, ele havia revisto, de longe e involuntariamente nas proximidades de um restaurante, Amy Ballette, que com seu chapéu vermelho e cardigã de cor clara, em nada se parecia com aquela mulher que 50 anos atrás encantara seu autor preferido, E. I. Lonoff, o qual se separara da mulher, Hope, para viver com Amy até morrer.
Por uma coincidência do destino, que costuma aprontar e embaralhar a vida de quem só quer sossego, o casal do classificado, incide sobre a vida de Nathan Zuckerman de forma arrebatadora. Num aspecto, o protagonista se encanta com Jamie Logan, a mulher do casal, cujo rosto alongado e estreito, emoldurado por cabelos negros, lisos e finos, até um pouco abaixo dos ombros, revelava uma beleza e uma personalidade contagiante. É o suplício de Tântalo de Zuckerman, já que mesmo que Jamie se encantasse pelo protagonista, as restrições fisiológicas deste impediam a realização de qualquer propósito sexual.
Por outro lado, Jamie e seu marido, o jovem gorducho com jeito suave e simpático, Billy Davidoff, eram amigos de Richard Kliman, escritor sobre assuntos literários e culturais, que está obcecado com a possibilidade de escrever sobre um grande segredo sobre a vida de E. I. Lonoff. Ele cerca Amy e Nathan Zuckerman para que ambos contribuam com seu livro, visto que ambos se negam a ajudar.
"Não há uma situação que um homem apaixonado não consiga explorar em proveito próprio"
Essa frase, para mim, define a relação que os personagens masculinos desenvolvem em toda a obra. Zuckerman, apaixonado por Jamie, dá extensão à sua mais recente obra literária criando diálogos fictícios e dotados de qualidade sexual entre ambos. Kliman, por sua vez, apaixonado pela ideia de escrever uma obra com potencial de sucesso, empreende uma batalha fortemente ofensiva para conseguir a contribuição de dois indivíduos que detêm conhecimentos essenciais para seu livro. Billy Davidoff, por sua vez, aproveita por si a história e a vida de Jamie num movimento de descoberta e autodescoberta e de dedicação conjugal anômalo.
Como pano de fundo da obra, o medo e a neurose novaiorquina pós-11 de setembro. A vitória de Bush nas eleições de 2004, contra Al Gore, representam para o casal Jamie e Billy um convite a novos ataques terroristas e a expansão do clima de ódio contra os americanos ao redor do mundo. O medo que acompanha o casal é o principal motivo para que Jamie, principalmente, opte pela mudança da cidade para o campo.
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[Cinema] Antes do Inverno (2013), de Philippe Claudel
Antes do Inverno (2013), de Philippe Claudel |
Assisti recentemente a um belíssimo filme argentino chamado Lugares Comuns (2002), em que no centro do enredo está um casal beirando os 60 anos, ele professor universitário e ela uma assistente social, também com um filho e neto, que, diferentemente de Paul e Luci, possuem uma simetria ímpar em torno dos prazeres da vida e uma semelhança de ideais que os torna autênticos companheiros. É contrastante com a enorme sala de jantar de Antes do Inverno, onde o casal escuta música clássica e conversa pouco. Não há o que dizer. Ela abdicou de uma vida profissional em nome da família, enquanto ele mal fica em casa e quase não tem tempo para a esposa em virtude do trabalho. Seus mundos são tão distantes que quando Paul pergunta a Luci por que ela acorda tão cedo, Luci responde que é para vê-lo um pouco, antes que Paul saia para o trabalho sem hora para voltar.
Quando Paul encontra Lou (Leila Bekhti), atendendo numa brasserie, e esta lhe diz que já foi tratada por um problema de apendicite por ele, estranhamente Paul começa a receber buquês de flores em sua casa e no seu consultório, provocando uma reviravolta em sua vida. Ele desenvolve uma relação de afeto por Lou à medida em que se aproxima dela, comovendo-se com sua vida quanto mais a conhece. O efeito é semelhante ao provocado na personagem de Woody Allen, Rowlands, em A Outra (Another Woman, 1988), uma mulher fria, metódica e organizada, cujos medos parecem despertar ao escutar, por acaso, a história de uma jovem grávida ao seu psiquiatra.
Em determinados momentos do filme, Paul mostra o quanto sua vida corre sem sentido, como quando confidencia ao seu amigo que nunca sonhou com nada e que deixou a vida rolar como uma pedra. Não é a mesma preocupação de Ivan Ilitch (A Morte de Ivan Ilitch, 1886, de Tolstói), um dedicado burocrata, que sempre buscou uma solução para sua vida pessoal e profissional que fosse satisfatória diante de seus amigos mais altamente colocados, e que ao descobrir-se com um problema na região do rim que lhe encerraria a vida, reflete que estava descendo a montanha achando que a galgava?
O mistério em torno da jovem atendente, Lou, é resolvido de maneira surpreendente, mas em harmonia com a obra. As paisagens bucólicas e a trilha sonora estão em plena sintonia, revelando muito sobre a busca pela estabilidade e a irreflexão do personagem principal em torno de um estilo de vida previsível, constante e seguro.
NOTA: 8,5
NOTA: 8,5
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quinta-feira, 24 de julho de 2014
[Literatura] Pontos de Vista de um Palhaço (1963, Heinrich Böll)
- Procure me entender, Hans - disse em tom de lamúria.
- Eu te entendo bem, desgraça! E muito bem.
- Mas que tipo de gente é você, Hans?
- Sou um palhaço, e coleciono instantes. Adeus.
E desliguei.
Trecho de Pontos de Vista de um Palhaço, de Heinrich Böll
Começarei a escrever pelo livro mais recente que li e que homenageia o título do blog através de um trecho localizado já na sua parte final. Pontos de Vista de um Palhaço, escrito pelo romancista alemão Henrich Böll (1917-1985), Prêmio Nobel de Literatura de 1972, se passa numa Alemanha recém saída da 2ª Guerra Mundial, sob a influência dos países vencedores do conflito e acometida de divergências ideológicas e religiosas profundas. Há um caráter autobiográfico no livro, visto que Böll, tal como o protagonista, Schnier Hans, descende de uma família católica que posteriormente se converteu contrariamente ao nazismo. As críticas à Juventude Hitlerista nos lembra que Heinrich, na adolescência, recusou-se a fazer parte dessa organização.
Voltando ao livro, a história gira em torno de Schnier, filho de uma família industrial alemã, católica e sovina. Ele acaba de voltar para sua cidade natal, Bonn, à casa herdada pelo seu avô. A partir daí, o que teremos são lembranças reflexivas e reencontros que nos fazem entender suas autênticas angústias, seus medos e desejos.
A começar pela sua própria família. O pai, com todo seu sucesso profissional em contraste com suas frustrações no ambiente doméstico pelo destino dos seus dois filhos homens e pela filha, Henriette, que aos 16 anos morreu combatendo na 2ª Guerra Mundial. Seu rigor e exigências de convenções em relação à prole contrasta com a vida extraconjugal que mantém. Ele é definido como um sujeito sem vitalidade ou passionalidade e me faz lembrar os tipos que definem ambições materiais para sua vida e chegam ao fim dela se perguntando para quê, afinal, a vida valeu a pena?
Sua mãe não merece grandes comentários. O abismo que a separa de de Schnier nos faz, por alguns momentos, acreditar que este seja orfão, na verdade. A ausência de proximidade, de sentimento intenso entre mãe e filho não é notado em nenhum instante, mas sim um sentimento de vergonha, de distanciamento e de frustração de ambos os lados. O irmão do protagonista, Leo, um jovem alto e loiro, estudante de teologia, à exceção dos momentos em que é descrito apoiando financeiramente o irmão, não merece grande atenção ao longo da história.
A crítica mais ácida e eloquente gira em torno dos personagens católicos, como Kostert, um promotor que contratou Schnier para uma apresentação e lhe pagou menos do que o acordado, economizando ao máximo o acerto financeiro. Outros como Kinkel, Blothert e Sommerwild são apresentados como figuras patéticas, hipócritas, às vezes esnobes, sem muito o que oferecer exceto uma religiosidade frágil e sem sentido. E justamente a religiosidade que ganha ainda mais fervor na perda de Hans Schnier de seu amor, Marie, que o abandonou para casar com Zupfner, um personagem a quem Schnier não dedica grandes críticas, até elogio sincero à sua convicção e atitude religiosa.
O momento em que o protagonista encontra o seu pai é um dos mais intensos do livro, em especial a frustração da juventude por não contar com uma alimentação à altura do que poderia oferecer a sua família - diferentemente do acontecia nas casas de famílias menos abastadas -, ou de não ter contado com seus pais que, por puro moralismo, apesar da fortuna, não o ajudaram quando ele mudou-se com Marie quando ela engravidou.
Interpreto o livro como uma crítica ao modo burguês de vida. Forçosamente estético, envolto em aparências e incapaz de desfrutar a vida da maneira mais plena possível. Pontos de Vista de um Palhaço é um livro intenso e agradabilíssimo, que flui de uma maneira fácil e nos faz viajar por uma sociedade e uma consciência que ainda nos prende e amarra, limitando as possibilidades da vida.
- Eu te entendo bem, desgraça! E muito bem.
- Mas que tipo de gente é você, Hans?
- Sou um palhaço, e coleciono instantes. Adeus.
E desliguei.
Trecho de Pontos de Vista de um Palhaço, de Heinrich Böll
Começarei a escrever pelo livro mais recente que li e que homenageia o título do blog através de um trecho localizado já na sua parte final. Pontos de Vista de um Palhaço, escrito pelo romancista alemão Henrich Böll (1917-1985), Prêmio Nobel de Literatura de 1972, se passa numa Alemanha recém saída da 2ª Guerra Mundial, sob a influência dos países vencedores do conflito e acometida de divergências ideológicas e religiosas profundas. Há um caráter autobiográfico no livro, visto que Böll, tal como o protagonista, Schnier Hans, descende de uma família católica que posteriormente se converteu contrariamente ao nazismo. As críticas à Juventude Hitlerista nos lembra que Heinrich, na adolescência, recusou-se a fazer parte dessa organização.
Voltando ao livro, a história gira em torno de Schnier, filho de uma família industrial alemã, católica e sovina. Ele acaba de voltar para sua cidade natal, Bonn, à casa herdada pelo seu avô. A partir daí, o que teremos são lembranças reflexivas e reencontros que nos fazem entender suas autênticas angústias, seus medos e desejos.
A começar pela sua própria família. O pai, com todo seu sucesso profissional em contraste com suas frustrações no ambiente doméstico pelo destino dos seus dois filhos homens e pela filha, Henriette, que aos 16 anos morreu combatendo na 2ª Guerra Mundial. Seu rigor e exigências de convenções em relação à prole contrasta com a vida extraconjugal que mantém. Ele é definido como um sujeito sem vitalidade ou passionalidade e me faz lembrar os tipos que definem ambições materiais para sua vida e chegam ao fim dela se perguntando para quê, afinal, a vida valeu a pena?
Sua mãe não merece grandes comentários. O abismo que a separa de de Schnier nos faz, por alguns momentos, acreditar que este seja orfão, na verdade. A ausência de proximidade, de sentimento intenso entre mãe e filho não é notado em nenhum instante, mas sim um sentimento de vergonha, de distanciamento e de frustração de ambos os lados. O irmão do protagonista, Leo, um jovem alto e loiro, estudante de teologia, à exceção dos momentos em que é descrito apoiando financeiramente o irmão, não merece grande atenção ao longo da história.
Heinrich Böll, Nobel de Literatura de 1972 |
O momento em que o protagonista encontra o seu pai é um dos mais intensos do livro, em especial a frustração da juventude por não contar com uma alimentação à altura do que poderia oferecer a sua família - diferentemente do acontecia nas casas de famílias menos abastadas -, ou de não ter contado com seus pais que, por puro moralismo, apesar da fortuna, não o ajudaram quando ele mudou-se com Marie quando ela engravidou.
Interpreto o livro como uma crítica ao modo burguês de vida. Forçosamente estético, envolto em aparências e incapaz de desfrutar a vida da maneira mais plena possível. Pontos de Vista de um Palhaço é um livro intenso e agradabilíssimo, que flui de uma maneira fácil e nos faz viajar por uma sociedade e uma consciência que ainda nos prende e amarra, limitando as possibilidades da vida.
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