Bairro do Recife, século XIX. Fonte: URB |
Palavras-chave: Estado, urbanização, autarquia da cidade, autarquia do campo, classe média, capitalismo monopolista
A urbanização brasileira
Quando visitamos as grandes capitais país afora, dificilmente nos damos conta da força da transformação pelas quais as cidades atravessaram por aqui ao longo de mais de cem anos quando, desde o século XIX, começaram a se urbanizar. Os estudos sociológicos costumam restringir à industrialização a explicação para o fenômeno da urbanização, mas essa é uma interpretação equivocada, dado que, a exemplo da foto ao lado, datada do século XIX, as cidades, com determinadas funções no âmbito da divisão internacional do trabalho, não apenas sediavam a burocracia pública, como também mediavam a circulação de mercadorias, como sede do capital comercial. Elas já concentravam poder, mesmo porque boa parte dos donos de engenho moravam nas cidades, retornando às suas produções somente na época da moenda.
A urbanização deu-se em uma parte, reduzida, claro, de cidades brasileiras e, tal como se deu no país, foi consequência da nossa débil inserção na divisão internacional do trabalho. A parte que nos coube naquele momento era a de ser um país monocultor voltado à exportação. Grandes áreas de terra no Nordeste, por exemplo, foram destinadas à produção da cana de açúcar, a qual foi um dos primeiros produtos destinados à exportação desde a colonização. As atribuições mais importantes das poucas, mas importantes cidades, eram a de realizar a mediação da produção com o mercado internacional e de dar vida à burocracia estatal.
Lógico que, a partir da década de 30, quando o Estado passa a conduzir um projeto de desenvolvimento articulado, introduzindo a substituição de importações e investindo como nunca na indústria, a qualidade da urbanização é remodelada e tem-se uma nova configuração no crescimento e no paradigma das cidades no país. A forma como se produzia mercadorias, sempre em vistas à exportação, impedia a articulação dos centros produtivos nacionais. As cidades eram desarticuladas entre si e voltadas para a metrópole.
Um registro da cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX serve como referencial para a intensa transformação pela qual a urbanização reestruturou a capital paulista e lhe fez de uma cidade de pouca significância à maior de toda a América Latina. É o momento em que saímos de uma "autarquia o campo" para uma "autarquia das cidades" (OLIVEIRA, 1980)
Autarquia do campo x Autarquia das cidades
O sentido de autarquia remete à ideia de poder absoluto. Francisco de Oliveira o utiliza para situar campo e cidade no processo de conformação do novo espaço urbano que emerge com a industrialização. Se antes a divisão social do trabalho em torno do campo repercutia sobre uma cidade pobre de urbanização, prevalecendo de maneira quase exclusiva a produção agrária, isso irá demandar, no momento da industrialização, uma intensa urbanização nas cidades para dotá-las da infraestrutura necessária para as novas relações de produção.
É uma relação diferente da que se desenvolveu na Europa durante a mesma transição, visto que as cidades europeias exerciam um papel, estavam integradas a uma divisão social do trabalho, o que moldou sua urbanização de maneira menos artificial e impactante. Tínhamos, por exemplo, artesãos e camponeses, e mesmo o campo atuou de forma complementar às cidades no processo de surgimento e consolidação da indústria em países como Inglaterra e França.
Dessa maneira, para poder atingir taxas satisfatórias, a industrialização brasileira precisava incorporar níveis muito elevados de urbanização. Nas cidades de Paulista, em Pernambuco, e em Votorantim, em São Paulo, as indústrias tiveram não somente que criar o ambiente fabril, mas as próprias residências onde os operários iriam morar. Os índices de urbanização se elevavam acima do próprio crescimento da força de trabalho empregada nas atividades industriais.
E o Estado?
O Estado nesse contexto atuou para ordenar as relações de produção. A partir da década de 30, entra em cena a regulamentação das relações entre capital e trabalho. A Revolução Burguesa, descrita por Carlos Nelson Coutinho como uma revolução passiva (muda a estrutura sem mexer nos privilégios), incorpora os elementos econômicos no processo de criação das leis, mas fecha os olhos às liberdades políticas e individuais, dado que os sindicatos foram controlados pelo aparelho estatal e os direitos políticos consistiriam numa farsa até 1945, quando Getúlio é deposto e novas eleições são realizadas.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, a classe trabalhadora em toda Europa havia saído fortalecida, com os sindicatos muito presentes na vida política, pressionando por mais direitos e melhoria nas condições de vida, enquanto, no Leste Europeu, a URSS ampliava seu campo de influência sobre vários países. Inspirados nas políticas de John Maynard Keynes, os países centrais do capitalismo vão aplicar parte considerável do orçamento para custear a reprodução da força de trabalho, melhorando consistentemente a qualidade de vida dos seus trabalhadores.
As novas políticas sociais e de pleno emprego implementados nestes países elevam o custo da força de trabalho e das mercadorias e forçam um movimento de industrialização rumo à periferia, via os capitais de poderosas empresas internacionais. Esse ambiente econômico, que surge no governo de Juscelino Kubitscheck, dará a origem ao capitalismo monopolista no país, incorporando uma mentalidade nova, integrando a ideia do trabalho improdutivo com o surgimento de uma estrutura hierárquica que introduz a figura de gerentes, executivos, etc.
Com essa nova concepção inserida no contexto do processo produtivo, há uma profunda mudança na relação entre o Estado e o urbano, pois se altera o padrão do próprio setor terciário, que antes mais horizontal, verá a expansão de uma expressiva parcela cuja melhor remuneração dá origem ao que a sociologia denomina como "classe média". Pelo seu peso social, força o Estado a adotar políticas públicas que lhe dão prioridade, secundarizando as demandas e necessidades das classes populares.
Esse é a formulação-chave para entender a relação entre o Estado e o urbano no Brasil, conforme o pensamento de Francisco de Oliveira. Quer dizer, a partir de 64, com a classe trabalhadora desorganizada politicamente no âmbito da economia e excluída das instituições, ela fica sem instrumento próprio para dar vazão aos seus descontentamentos quanto às prioridades assumidas pelos governos.
Como temos visto nos últimos anos principalmente, mas a partir da década de 80, os trabalhadores assumiram, com a redemocratização, uma série de espaços públicos para pressionar o Estado brasileiro, contestar as prioridades e, em 2003, elegeram um presidente com raízes sociais no sertão nordestino. Alterou-se substancialmente, desde a década de 80, o paradigma político e social que dá feições às reivindicações populares no país, o que redesenhou a próprio relação entre Estado e sociedade, tal como as prioridades orçamentárias. Com voz, os mais pobres passaram a ter vez no processo de planejamento e de execução de políticas que atendem aos seus interesses, embora ainda de maneira insuficiente em relação às suas necessidades.
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Francisco. O Estado e o urbano no Brasil. In: Espaço e debates, nº 6, jul./set., 1982.
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