Referência: SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
A urbanização brasileira é resultado de um processo fortemente seletivo e concentrador. A urbanização se operou na sociedade privilegiando uma camada da população em detrimento de outra, tornando as cidades territórios onde o conflito é constante e inerente, todavia também de onde as próprias soluções para os problemas podem surgir.
A nossa urbanização pretérita tem uma origem de séculos atrás. Embora durante a maior parte da nossa história tenhamos sido um país de caráter agrícola, a cidade de Salvador viveu um processo notável de urbanização, comandando a primeira rede urbana das Américas junto com Cachoeira, Santo Amaro e Nazaré.
As cidades, a princípio, significavam mais um ambiente onde se afirmava o poder do que um espaço de moradia. Somente a partir do século XVIII, no entanto, os senhores de engenho e os fazendeiros passam a dedicar mais tempo nela, retornando às suas terras somente no período de corte da cana ou de sua moenda (BASTIDE, 1978). O papel das cidades era de sediar o capital comercial e de garantir o funcionamento da burocracia pública.
O que tínhamos como um elemento comum às cidades é a falta de conexão entre elas, prevalecendo uma economia natural voltada à extração de minerais ou à agricultura comercial. Somente no século XIX, com a produção de café em São Paulo serão viabilizados investimentos voltados à implantação de estradas de ferro, melhoria dos portos e de meios de comunicação, dando fluidez a essa parte do território brasileiro. De maneira geral, segue uma tradição de melhoramentos públicos regionalizados no país, a partir da sua dinâmica econômica.
Até o início do século XX, teremos poucas mudanças em relação à taxa de urbanização. De 1925 a 1940, a taxa de ocupação no setor secundário passou de 12% para 10,1%. É a partir de 1940 que a lógica da industrialização vai prevalecer, momento em que temos uma forte redução dos empregados no setor primário, de 64% neste ano para 53,7% em 1960. Nesse período, o setor terciário saltou de 25,9% para 33,2%, enquanto o secundário chegou a 13,1%.
A lógica das atividades industriais introduz um sistema social complexo não restrito apenas à produção, mas à formação de um mercado nacional, dotando o território nacional de equipamentos para integrá-lo, ampliando o consumo e ativando um processo mais consistente de urbanização, saindo da escala regional para a escala nacional.
Entre 1940 e 1980, opera-se uma inversão quanto ao lugar onde as pessoas moram, passando de 26,35% para 68,86% a taxa de urbanização no país. Esse foi um período de explosão demográfica, o que o torna ainda mais relevante para compreensão do momento. Com a lógica industrial, a relação natural com o meio perdeu espaço para a confluência de uma nova lógica: a do meio técnico-científico.
A mecanização do território opera um processo de construção e reconstrução do espaço urbano em larga escala, numa associação direta com os novos padrões de acumulação capitalista, que precisa expandir e atingir novas áreas. A informação, de maneira abrangente, é o motor dessa articulação do território, dotado de equipamento para facilitar sua circulação. São construídas estradas de ferro e estrada de rodagem conectando entre si os lugares mais distantes do país.
Há duas esferas que se interpõem nesse processo: um psicológico (psicoesfera) e outro tecnológico (tecnoesfera). A tecnoesfera traduz numa substituição do meio natural construindo um dado necessário e dominante sobre o território. Sua predominância cria a psicoesfera, fornecendo regras objetivas de racionalidade e de uma imaginário que, assim como a tecnoesfera, são construídas em lugares longíquos. Ela é local, mas produto de um tipo de sociedade e inspirada em regras cujas dimensões são muito mais complexas.
Toda conduta passa a ser dotada de razão e inteligência, em contraste com os espaços opacos, não racionais ou incompletamente racionais. Há uma hierarquização entre regiões com conteúdos e saber e regiões desprovidas de saber, em que uma manda e outra obedece. Isso está simbolizado no filme de Eric Rohmer, A Árvore, o Prefeito e a Mediateca (1993), numa discussão entre o prefeito e sua namorada sobre o porquê do novo espaço espaço de lazer que a prefeitura pretende construir ser tão dotada de funcionalidade, sem muito espaço para abstração ou criatividade.
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