segunda-feira, 8 de setembro de 2014

(1993) A Árvore, o Prefeito e a Mediateca - Eric Rohmer

Uma série de confrontações se revelam nessa obra de Eric Rohmer. O prefeito de uma pequena cidade francesa, Julien Dechaumes (Pascal Greggory) membro do Partido Socialista, pretende construir um grande espaço multimídia na região rural, englobando biblioteca, espaço para exposição de filmes e um ambiente voltado a apresentações teatrais. Essa é a sua grande vedete, busca-se que seja a mais importância obra de sua administração, capaz de galgá-lo a posições políticas ainda mais expressivas. 

As variáveis e os impoderáveis da política, as subjetividades que se revelam a partir dos interesses dos cidadãos em torno das ações governamentais e a influência da mídia se descortinam em meio à busca da execução do projeto pelo prefeito. Os diálogos bem construídos e envolventes entre ele e a escritora Bérénice Beurívage (Airelle Domsbale), por quem Dechaumes é apaixonado, dão uma perspectiva pessoal muito original em relação à contenda política.

Embora já se tenham passado mais de duas décadas do lançamento do filme, suas premissas são completamente atuais. Afinal, entre a possibilidade de construir um espaço público que irá proporcionar emprego e desenvolvimento, refreando a sangria migratória das regiões rurais para as urbanas, e a preservação da paisagem rural, o que é mais importante, se é que é possível ter uma opção?

E entre construir um espaço completamente funcional, acabado e completo, e um espaço de maior liberdade de interpretação e remodelação a partir de uma sociedade viva e criativa, o que deve ser feito? E como trabalhar a relação de diálogo entre uma parcela de pessoas insatisfeitas com projetos governamentais e o poder público na resolução dos problemas que afetam a coletividade?

Segundo Weber (1864-1920) a característica mais importante da sociedade moderna é a racionalização. Nesse sentido, é mesmo racional uma grande mediateca toda pensada e planejada em tornos de finalidades específicas, voltando-se firmemente para os interesses econômicos, quando os mesmos recursos poderiam ser aplicados em menor soma em prol da mesma finalidade, mas não são pela própria burocracia racional, na aquisição de imóveis baratos no próprio vilarejo, conforme sugeriu a filha do professor?

A maneira singular e natural como o autor evidencia as causalidades na cadência da vida é feita de forma muito inteligente. Cada capítulo é introduzido pela conjunção adverbial condicional "se", mas o que torna esse recurso tão importante é que as mudanças que a acompanham se associam à relação quase espontânea dos personagens com o mundo, pouco refletida ou constatada por eles.

O filme tem muito a ver com as discussões sobre territórios e os elos constituídos sobre eles, a partir das dimensões de escala (como o projeto que afeta uma pequena cidade entra em crise depois que o partido socialista perde a eleição nacional), dimensões abstratas (a apropriação simbólica sobre a natureza), materiais de origem natural (comportamento do homem, buscando dominar e moldar a natureza em torno dos seus interesses), jurídico-política (o poder que se manifesta pela vontade de quem governa) e econômica (o projeto e sua finalidade de atrair indústrias e empregos).

É por uma capacidade extraordionária de trabalhar com profundidade as várias dimensões da espécie humana que Rohmer, embora com roteiros prosaicos e habituais, consegue ser sempre filosófico e reflexivo.

Resenha da obra de Milton Santos: A Urbanização Brasileira (parte 1)

Referência: SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.

A urbanização brasileira é resultado de um processo fortemente seletivo e concentrador. A urbanização se operou na sociedade privilegiando uma camada da população em detrimento de outra, tornando as cidades territórios onde o conflito é constante e inerente, todavia também de onde as próprias soluções para os problemas podem surgir.

A nossa urbanização pretérita tem uma origem de séculos atrás. Embora durante a maior parte da nossa história tenhamos sido um país de caráter agrícola, a cidade de Salvador viveu um processo notável de urbanização, comandando a primeira rede urbana das Américas junto com Cachoeira, Santo Amaro e Nazaré.

As cidades, a princípio, significavam mais um ambiente onde se afirmava o poder do que um espaço de moradia. Somente a partir do século XVIII, no entanto, os senhores de engenho e os fazendeiros passam a dedicar mais tempo nela, retornando às suas terras somente no período de corte da cana ou de sua moenda (BASTIDE, 1978). O papel das cidades era de sediar o capital comercial e de garantir o funcionamento da burocracia pública.

O que tínhamos como um elemento comum às cidades é a falta de conexão entre elas, prevalecendo uma economia natural voltada à extração de minerais ou à agricultura comercial. Somente no século XIX, com a produção de café em São Paulo serão viabilizados investimentos voltados à implantação de estradas de ferro, melhoria dos portos e de meios de comunicação, dando fluidez a essa parte do território brasileiro. De maneira geral, segue uma tradição de melhoramentos públicos regionalizados no país, a partir da sua dinâmica econômica.

Até o início do século XX, teremos poucas mudanças em relação à taxa de urbanização. De 1925 a 1940, a taxa de ocupação no setor secundário passou de 12% para 10,1%. É a partir de 1940 que a lógica da industrialização vai prevalecer, momento em que temos uma forte redução dos empregados no setor primário, de 64% neste ano para 53,7% em 1960. Nesse período, o setor terciário saltou de 25,9% para 33,2%, enquanto o secundário chegou a 13,1%.

A lógica das atividades industriais introduz um sistema social complexo não restrito apenas à produção, mas à formação de um mercado nacional, dotando o território nacional de equipamentos para integrá-lo, ampliando o consumo e ativando um processo mais consistente de urbanização, saindo da escala regional para a escala nacional.

Entre 1940 e 1980, opera-se uma inversão quanto ao lugar onde as pessoas moram, passando de 26,35% para 68,86% a taxa de urbanização no país. Esse foi um período de explosão demográfica, o que o torna ainda mais relevante para compreensão do momento. Com a lógica industrial, a relação natural com o meio perdeu espaço para a confluência de uma nova lógica: a do meio técnico-científico.

A mecanização do território opera um processo de construção e reconstrução do espaço urbano em larga escala, numa associação direta com os novos padrões de acumulação capitalista, que precisa expandir e atingir novas áreas. A informação, de maneira abrangente, é o motor dessa articulação do território, dotado de equipamento para facilitar sua circulação. São construídas estradas de ferro e estrada de rodagem conectando entre si os lugares mais distantes do país.

Há duas esferas que se interpõem nesse processo: um psicológico (psicoesfera) e outro tecnológico (tecnoesfera). A tecnoesfera traduz numa substituição do meio natural construindo um dado necessário e dominante sobre o território. Sua predominância cria a psicoesfera, fornecendo regras objetivas de racionalidade e de uma imaginário que, assim como a tecnoesfera, são construídas em lugares longíquos. Ela é local, mas produto de um tipo de sociedade e inspirada em regras cujas dimensões são muito mais complexas.

Toda conduta passa a ser dotada de razão e inteligência, em contraste com os espaços opacos, não racionais ou incompletamente racionais. Há uma hierarquização entre regiões com conteúdos e saber e regiões desprovidas de saber, em que uma manda e outra obedece. Isso está simbolizado no filme de Eric Rohmer, A Árvore, o Prefeito e a Mediateca (1993), numa discussão entre o prefeito e sua namorada sobre o porquê do novo espaço espaço de lazer que a prefeitura pretende construir ser tão dotada de funcionalidade, sem muito espaço para abstração ou criatividade.

domingo, 7 de setembro de 2014

(1982) Um Casamento Perfeito - Eric Rohmer

Dez anos após "Amor à Tarde" (1972), Eric Rohmer nos brinda com outro belíssimo filme em que aborda o envolvimento e o interesse sob o paradigma da razão. Se em Amor à Tarde temos a personagem Chloé deliberadamente direcionada a seduzir Frédréric, por uma convicção beirando a lógica e a objetividade desde que o visita pela primeira vez em seu escritório numa tarde, em Um Casamento Perfeito o olhar é agora conduzido pela perspectiva feminina.


Após vários envolvimentos fracassados com homens comprometidos, Sabine (Béatrice Romand) agora quer casar. A sensação que ela transmite diante dessa vontade é a de alguém toscamente inocente e infantil. Diante de toda e qualquer decepção, é nesse refúgio que ela encontra serenidade, seja no término do relacionamento com o pintor com quem mantém um caso, seja diante da preocupações aventadas sobre si por sua mãe ou mesmo da iminente perda do emprego.

Durante uma festa para a qual se dirige de maneira desinteressada, é apresentada ao jovem advogado, Edmond (André Dussolier), por sua amiga e anfitrã do evento, Clarisse (Arielle Dombasle), que é prima do rapaz. Com requisitos que considera essenciais a um bom marido, Sabine é estimulada por Clarisse a procurá-lo, insinuando um "amor à primeira vista" entre os dois, seja lá o que isso signifique. Há uma dualidade do real que percorre todo o filme e que envolve a objetividade e a subjetividade dos personagens.

Enquanto Sabine vive uma ilusão e começa absurdamente a até imaginar como será sua vida enquanto dona do lar, Edmond, sem ter ideia do passa pela cabeça de sua pretendente, mantém um distanciamento seguro e frio de suas pretensões. Ela quer cuidar de uma casa que possa chamar de sua e defende essa condição como uma divisão de tarefas, uma complementaridade da relação, e não uma posição subordinada ou inferior em relação ao marido. Num dos diálogos do filme, ela questiona seu amigo que afirma que, nessa situação, ela será sustentada:

- É incrível! Mulher que fica em casa agora é prostituta?
- Não, mas é depreciada.
- E aquela que passa o dia ouvindo berro de criança mimada, não é? É você que está ultrapassado! Para você, a relação entre homem e mulher é de dominação. O casamento é uma associação na qual cada um faz o que sabe.

Com esse temperamento forte, idealista e decidido, ela insiste ao máximo uma aproximação duradoura com Edmond, chegando a ligar várias vezes para ele e a comemorar seu aniversário com uma festa somente com o pretexto de se aproximar do seu pretendente.

O desfecho, embora previsível, não deixa de ser sedutor e elegante. A natureza humana é repleta dessa contradição entre o real e o aparente, entre o que gostaríamos que fosse e as coisas como elas realmente são. Essa é, na minha opinião, a melhor maneira de interpretar Um Casamento Perfeito.

(1972) Amor à Tarde - Eric Rohmer

Minha introdução na vasta obra do diretor francês Eric Rohmer (dirigiu 27 filmes a partir de À Sonata de Kreutzer até Os Amores de Atrée e Céladon) é firmada através dos personagens principais, profundos e complexos, da obra Amor à Tarde, de 1972. No primeiro plano, temos Frédéric (Bernard Verley), sócio de uma pequena firma parisiense, casado com Helene (Françoise Verley), uma professora com quem acabara de ter o segundo filho. Logo de cara, mesmo sem conhecer muito do estilo adotado pelo diretor, somos transportados a um filme que explora, dentre outros, o íntimo de uma das mais angustiantes, enigmáticas e impenetráveis questões humanas: o desejo sexual.

Em uma das primeiras cenas, a caminho do trabalho, deslocando-se dentro do trem e envolto em seus pensamentos, Frédréric admira uma jovem mulher e põe-se a admitir que, a partir do seu casamento, passou a "achar todas as mulheres bonitas", admirando seus gestos e tentando reencontrar o mistério que possuíam antes. No entanto, os desejos do protagonista não passam disso, de admiração e contemplação. Na cena a seguir, sem grande importância no conjunto dessa obra, mas de grande valor na filmografia do diretor francês, Frédéric, enquanto caminha no mar de gente de Paris, exalta a cidade grande em detrimento do campo e da periferia, que o oprimem.

A vida deste personagem parece seguir um roteiro constante e inabalável até o dia em que a ex-amante de um grande amigo seu, Chloé (Zouzou), começa a visitá-lo regularmente com o propósito de seduzi-lo. Ela, com toda a fragilidade, inconstância e instabilidade que vai demonstrando a cada visita, parece situar-se numa oposição a Helene. Chloé coleciona diferentes empregos, residências e amores (um tanto confusos e utilitaristas). Muito semelhante à oposição entre as personagens Lou e Lucie de Antes do Inverno (2013), mas sem o desfecho trágico desta obra.

A partir desse reencontro, o enredo, em sua maior parte, abordará o desdobramento da relação entre os dois, a partir do mistério, da cumplicidade e do desejo que dão forma à excitação dos encontros, cada vez mais esperados e necessários para Frédréric, que envolve-se gradativamente por Chloé. Como é da característica do diretor, não poderiam faltar discussões filosóficas e existenciais, como quando ambos discutem sobre a poligamia e o protagonista descreve essa prática como "escravidão da mulher". "Não se a mulher também for adepta", ela responde, sucedida por Frédréric que diz que se daria bem numa sociedade assim, mas na atual, com as regras com as quais deve viver, prefere ser monogâmico a basear a vida em mentiras.

Há uma certa racionalidade no comportamento afetivo dos personagens, os quais, diferentemente do senso comum, lidam de maneira mais natural e livre com um tema que costuma oprimir consideravelmente a maioria das relações conjugais.

O que poderia ser uma desvantagem para o filme aos olhos da grande maioria das pessoas, as quais estão acostumadas à velocidade da nossa sociedade atual - em que tudo é instantâneo e efêmero -, que é a narrativa lenta somada a diálogos longos e inteligentes, é, na minha opinião, um diferencial a ser aproveitado em Amor à Tarde. Sem a profundidade alcançada pelo diretor, seria inevitável recair em esteriótipos e conclusões simplistas sobre os personagens, como é rotineiro no cinema em decorrência do tempo exíguo para lidar com tantas variáveis na realização de uma obra.

A contradição da relação entre Frédréric e Helene, quase burocrática, na qual ambos pouco têm a conhecer um do outro, e entre Frédréric e Chloé, cheia de energia e de novidades, é típica da existência humana. A partir do momento em que se rompem as ilusões e caem as máscaras, o indivíduo de carne e osso, não aquele idealizado, ganha materialidade e ressignificação.

Um filme a se contemplar, refletir e assistir sem pressa, sorvendo cada parte e observando a nós mesmos através dele.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Gramsci e as eleições no Brasil

No próximo mês, o Brasil elegerá seu/sua próximo/a presidente, deputados federais, deputados
Gramsci e a atualidade de suas
 reflexões para compreender 
o Brasil.
estaduais e senadores. Será uma eleição atípica em relação às anteriores, dado que a polarização das últimas eleições não deverá se repetir. Marina Silva, candidata pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), alçada à posição após a morte trágica do ex-governador Eduardo Campos, figura na vice-liderança da corrida presidencial, atrás da atual presidente Dilma Rousseff, do PT (Partido dos Trabalhadores).

É possível se compreender de maneira relacional a teoria de Gramsci sobre o Estado dentro desse contexto de disputa política proporcionado pelas eleições gerais no país. Quando o intelectual italiano, falecido em 1937, formulou sua teoria política, ele identificou o Estado como a conjunção de dois tipos de "sociedades": a política e a civil. Na primeira, se afirma a coerção em sentido estrito, compondo-se por meio de leis e pela polícia. Os aparelhos repressivos de Estado seriam utilizados de forma mais recorrente onde a sociedade civil é mais escassa, lugares onde, para Gramsci, a formação social ainda é de tipo "oriental".

A sociedade civil, por sua vez, é o espaço onde o consenso se forma. Ela é portadora material da hegemonia e está localizada entre o Estado em sentido restrito (ou sociedade política) e a infraestrutura econômica. Há na sociedade civil tanto uma autonomia frente ao Estado quanto a difusão de ideologias, de uma vontade coletiva. Ela dá substância à explicação de Gramsci sobre o fracasso do processo revolucionário na Europa, diferentemente do que aconteceu na Rússia. Como neste país a sociedade civil era débil, a única trincheira a ser disputa era a da própria sociedade política. Num país onde a sociedade civil é desenvolvida, o processo revolucionário dar-se-ia de maneira mais lenta e complexa.

A condução do Estado em sociedades mais desenvolvidas e plurais requer, portanto, organismos que sejam portadores de uma vontade coletiva e que deem sedimentação a um dado consenso. Esses organismos, chamados de aparelhos privados de hegemonia, podem ser de vários tipos, como os sindicatos, as associações, os partidos políticos, a mídia, a Igreja, jornais, revistas, redes de televisão, dentre outros.

O processo político brasileiro e o fenômeno "Marina Silva"

Com um terço do eleitorado brasileiro (33% de acordo com a última pesquisa do Ibope), Marina Silva está bem à frente da sua concorrente, Dilma Rousseff (que tem 37% segundo a mesma pesquisa), na preferência dos eleitores com renda acima dos 5 salários mínimos (37% a 28%). Dilma lidera entre os mais pobres (49% a 27%). Ainda, entre os eleitores mais jovens (42% a 31%), a partir da pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, a preferência de 42% é pela candidata pessebista.

Até poucos meses atrás, Marina envidava todos os seus esforços para a constituição de seu partido, o Rede Sustentabilidade. Não houve, apesar de toda a energia aí empreendida, êxito na sua empreitada, situação que provocou uma alteração de rumo em prol de uma composição com Eduardo Campos. Com a morte deste, a substituição de Marina alçou de maneira espetacular a preferência de uma parcela de indecisos e da classe média.

A candidatura da ambientalista é vista por alguns analistas como a herdeira dos movimentos de junho de 2013, momento em que uma considerável massa de jovens, principalmente da classe média, foram às ruas protestar por melhores condições de vida e negando o protagonismo da política institucional, ocasião em que a aprovação popular dos governos em todos os níveis desabou.

Como vimos no artigo anterior, com base na formulação sobre o Estado e o urbano no Brasil, de Francisco de Oliveira, a classe média, a partir do momento em que ganha força e consistência diante do capitalismo monopolista que emerge com o Estado de bem-estar europeu, permeada por uma divisão do trabalho que dá vazão a um segmento "improdutivo", passa a se tornar cada vez mais encorpada. Quando a ditadura anula a organização no ambiente econômico dos trabalhadores e os exclui politicamente, os setores de classe média, agora muito mais numerosos, se apropriam politicamente desse momento e desequilibram a relação entre Estado e o urbano, passando a ser atendidos de forma muito superior pelas políticas públicas quando em comparação com os mais pobres.

Até 2003, esse desequilíbrio foi constante. Somente com o governo Lula, a miséria social no país é qualitativamente reduzida. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 2003 e 2009, a pobreza no Brasil caiu 36,5%, totalizando 27,9 milhões de pessoas. Até o final do governo, foi possível construir uma pactuação social em que todos saíram ganhando, dado que, em virtude da própria economia em nível internacional, o PIB cresceu como há anos não crescia.

No governo Dilma, as prioridades dirigidas aos mais pobres foram mantidas. A grossíssimo modo, é possível dizer que as elites mantiveram intactos seus ganhos desde 2003 e assim continuou no atual governo, apesar de que, diante de um crescimento econômico precário nos últimos anos, alguém precisou perder para manter as conquistas dos setores mais privilegiados e dos mais pobres. Esse "alguém" foi a classe média, que, como já se demonstrou, é um protagonista político de grande peso nas cidades grandes do país.

É possível se demonstrar isso pelos dados do Datafolha divulgados no final de agosto. Nas cidades com mais de 500 mil habitantes, a preferência por Marina é clara (37% contra 27% de Dilma). As candidata do PT e do PSB estão empatadas tecnicamente nas cidades entre 50 a 200 mil habitantes, sendo que Dilma ganha consideravelmente bem (44% contra 29% de Marina) nas cidades com até 50 mil habitantes. O voto em Marina é, portanto, na minha opinião, um voto de protesto às prioridades evocadas pelo governo do PT, as quais, durante a gestão de Dilma, se manifestaram de forma mais forte sobre o governo. São grandes as chances de vitória dela, apesar de que, como pretendo demonstrar a seguir, suas chances de governabilidade sem grandes concessões são mínimas.

Poder e sociedade civil

Dentre todos as organizações da sociedade civil listadas anteriormente, a mídia é a que joga o maior peso. Em Porto Alegre, costumam chamar o Orçamento Participativo de quarto Poder, listado ao lado do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo. No entanto, ninguém exerce melhor um efetivo poder paralelo sobre a sociedade política do que os grandes conglomerados da comunicação. Portando um projeto próprio de poder, o que significa dentre outros, no Brasil, debilitar a política como instrumento de mudança, conter a democratização política e difundir os valores do livre mercado, a mídia brasileira, destacando-se a Rede Globo, a Veja e a Folha de São Paulo, atuaram como verdadeiros partidos políticos em franca artilharia contra o governo federal.

Como foi possível, diante de uma artilharia pesada da grande mídia, resistir aos ataques, governar e reeleger por duas vezes o projeto eleitoral conduzido pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados? Graças à força conquistada pelo PT na sociedade civil, como a direção sobre a CUT (Central Única de Trabalhadores), sobre milhares de sindicatos país afora, com a presença forte e majoritária no âmbito das instituições superiores de ensino, nas associações e organizações não-governamentais, nos movimentos "pós-materialistas" e também na própria rede de partidos políticos sobre os quais o PT atuou como força dirigente.

Qual foi a alternativa real ao PT durante todo esse período? O PSDB, articulado principalmente pela grande mídia e pelos partidos-satélites ao seu projeto, como o PPS e o DEM. Nenhum outro conjunto de organizações presentes na sociedade civil foi portador real e efetivo de um projeto alternativo de país, o que demonstra que o projeto eleitoral de Marina Silva, longe de repousar em uma sólida sociabilidade política, é expressão da recusa, da rejeição de parcelas amplas da sociedade, localizadas especialmente na classe média, à atual mandatária. Aécio, por ser expressão de um projeto de país que já mostrou suas incongruências e fragilidades, não foi capaz de dar rosto e voz a esses anseios.

No entanto, se o PT foi capaz de resistir à ofensiva midiática graças a uma sociedade civil forte e articulada em todos os níveis federativos, a candidatura de Marina está longe de oferecer essa possibilidade. Se vencer, tornando-se presidente, ela não teria o mesmo capital social do Partido dos Trabalhadores para conter as pressões que surgirão do capital financeiro e do oligopólio midiático. Dessa maneira, ela já acenou aos bancos que irá garantir a autonomia do Banco Central, medida almejada pelo setor financeiro que detém altas taxas de lucro com o que se paga de juros no país.

Sem falar que, sem uma base política ampla no Congresso Nacional, não será possível à atual candidata do PSB fazer as reformas que o país precisa, como a tributária e a política. Quanto ao Legislativo, as concessões precisariam ser ainda maiores, dado que, diferentemente do PT que assumiu o governo em 2003, a bancada de parlamentares eleitos pelo PSB é muito maior. E o partido sequer é o de Marina Silva.

Desse modo, Gramsci, mesmo desenvolvendo a maior parte da sua teoria em condições precárias (foi preso em 1926) e passadas algumas décadas desde seu falecimento, mostra, por meio de poderosos instrumentos de análise política, a atualidade de suas observações sobre o processo político e social quando analisada a sociedade brasileira da segunda década do século XXI.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A urbanização brasileira

Bairro do Recife, século XIX. Fonte: URB
Resumo: A urbanização não é produto da industrialização, mas sim um fenômeno que se dá no Brasil desde o século XIX. A industrialização dá uma feição diferente e introduz a autarquia da cidade. Se antes as cidades tinham a função de exercer o comércio e de sediar a burocracia, a partir de 30 elas também são sedes do capital produtivo. Diante da ausência de uma divisão social do trabalho pretérita, a taxa de urbanização no país terá que ser muito maior, visto que o capital precisará, além de construir fábricas, conceder a moradia dos operários. Com o capitalismo monopolista, resultado da elevação da força de trabalho e da mercadoria na Europa com as políticas keynesianistas, introduz-se no Brasil uma filosofia diferente e hierárquica no ambiente industrial, relacionado ao trabalho produtivo (exercido por gerentes, executivos, etc). Se o setor terciário era mais horizontal antes desse período, agora passa a uma expansão significativa, dando origem ao que chamamos de "classe média". A classe média irá redefinir a maneira como o Estado implementa políticas públicas.

Palavras-chave: Estado, urbanização, autarquia da cidade, autarquia do campo, classe média, capitalismo monopolista

A urbanização brasileira

Quando visitamos as grandes capitais país afora, dificilmente nos damos conta da força da transformação pelas quais as cidades atravessaram por aqui ao longo de mais de cem anos quando, desde o século XIX, começaram a se urbanizar. Os estudos sociológicos costumam restringir à industrialização a explicação para o fenômeno da urbanização, mas essa é uma interpretação equivocada, dado que, a exemplo da foto ao lado, datada do século XIX, as cidades, com determinadas funções no âmbito da divisão internacional do trabalho, não apenas sediavam a burocracia pública, como também mediavam a circulação de mercadorias, como sede do capital comercial. Elas já concentravam poder, mesmo porque boa parte dos donos de engenho moravam nas cidades, retornando às suas produções somente na época da moenda.

A urbanização deu-se em uma parte, reduzida, claro, de cidades brasileiras e, tal como se deu no país, foi consequência da nossa débil inserção na divisão internacional do trabalho. A parte que nos coube naquele momento era a de ser um país monocultor voltado à exportação. Grandes áreas de terra no Nordeste, por exemplo, foram destinadas à produção da cana de açúcar, a qual foi um dos primeiros produtos destinados à exportação desde a colonização. As atribuições mais importantes das poucas, mas importantes cidades, eram a de realizar a mediação da produção com o mercado internacional e de dar vida à burocracia estatal.

Lógico que, a partir da década de 30, quando o Estado passa a conduzir um projeto de desenvolvimento articulado, introduzindo a substituição de importações e investindo como nunca na indústria, a qualidade da urbanização é remodelada e tem-se uma nova configuração no crescimento e no paradigma das cidades no país. A forma como se produzia mercadorias, sempre em vistas à exportação, impedia a articulação dos centros produtivos nacionais. As cidades eram desarticuladas entre si e voltadas para a metrópole.

Um registro da cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX serve como referencial para a intensa transformação pela qual a urbanização reestruturou a capital paulista e lhe fez de uma cidade de pouca significância à maior de toda a América Latina. É o momento em que saímos de uma "autarquia o campo" para uma "autarquia das cidades" (OLIVEIRA, 1980)

Autarquia do campo x Autarquia das cidades

O sentido de autarquia remete à ideia de poder absoluto. Francisco de Oliveira o utiliza para situar campo e cidade no processo de conformação do novo espaço urbano que emerge com a industrialização. Se antes a divisão social do trabalho em torno do campo repercutia sobre uma cidade pobre de urbanização, prevalecendo de maneira quase exclusiva a produção agrária, isso irá demandar, no momento da industrialização, uma intensa urbanização nas cidades para dotá-las da infraestrutura necessária para as novas relações de produção.


É uma relação diferente da que se desenvolveu na Europa durante a mesma transição, visto que as cidades europeias exerciam um papel, estavam integradas a uma divisão social do trabalho, o que moldou sua urbanização de maneira menos artificial e impactante. Tínhamos, por exemplo, artesãos e camponeses, e mesmo o campo atuou de forma complementar às cidades no processo de surgimento e consolidação da indústria em países como Inglaterra e França.

Dessa maneira, para poder atingir taxas satisfatórias, a industrialização brasileira precisava incorporar níveis muito elevados de urbanização. Nas cidades de Paulista, em Pernambuco, e em Votorantim, em São Paulo, as indústrias tiveram não somente que criar o ambiente fabril, mas as próprias residências onde os operários iriam morar. Os índices de urbanização se elevavam acima do próprio crescimento da força de trabalho empregada nas atividades industriais.

E o Estado?

O Estado nesse contexto atuou para ordenar as relações de produção. A partir da década de 30, entra em cena a regulamentação das relações entre capital e trabalho. A Revolução Burguesa, descrita por Carlos Nelson Coutinho como uma revolução passiva (muda a estrutura sem mexer nos privilégios), incorpora os elementos econômicos no processo de criação das leis, mas fecha os olhos às liberdades políticas e individuais, dado que os sindicatos foram controlados pelo aparelho estatal e os direitos políticos consistiriam numa farsa até 1945, quando Getúlio é deposto e novas eleições são realizadas.


Com o final da Segunda Guerra Mundial, a classe trabalhadora em toda Europa havia saído fortalecida, com os sindicatos muito presentes na vida política, pressionando por mais direitos e melhoria nas condições de vida, enquanto, no Leste Europeu, a URSS ampliava seu campo de influência sobre vários países. Inspirados nas políticas de John Maynard Keynes, os países centrais do capitalismo vão aplicar parte considerável do orçamento para custear a reprodução da força de trabalho, melhorando consistentemente a qualidade de vida dos seus trabalhadores.

As novas políticas sociais e de pleno emprego implementados nestes países elevam o custo da força de trabalho e das mercadorias e forçam um movimento de industrialização rumo à periferia, via os capitais de poderosas empresas internacionais. Esse ambiente econômico, que surge no governo de Juscelino Kubitscheck, dará a origem ao capitalismo monopolista no país, incorporando uma mentalidade nova, integrando a ideia do trabalho improdutivo com o surgimento de uma estrutura hierárquica que introduz a figura de gerentes, executivos, etc.

Com essa nova concepção inserida no contexto do processo produtivo, há uma profunda mudança na relação entre o Estado e o urbano, pois se altera o padrão do próprio setor terciário, que antes mais horizontal, verá a expansão de uma expressiva parcela cuja melhor remuneração dá origem ao que a sociologia denomina como "classe média". Pelo seu peso social, força o Estado a adotar políticas públicas que lhe dão prioridade, secundarizando as demandas e necessidades das classes populares.

Esse é a formulação-chave para entender a relação entre o Estado e o urbano no Brasil, conforme o pensamento de Francisco de Oliveira. Quer dizer, a partir de 64, com a classe trabalhadora desorganizada politicamente no âmbito da economia e excluída das instituições, ela fica sem instrumento próprio para dar vazão aos seus descontentamentos quanto às prioridades assumidas pelos governos.

Como temos visto nos últimos anos principalmente, mas a partir da década de 80, os trabalhadores assumiram, com a redemocratização, uma série de espaços públicos para pressionar o Estado brasileiro, contestar as prioridades e, em 2003, elegeram um presidente com raízes sociais no sertão nordestino. Alterou-se substancialmente, desde a década de 80, o paradigma político e social que dá feições às reivindicações populares no país, o que redesenhou a próprio relação entre Estado e sociedade, tal como as prioridades orçamentárias. Com voz, os mais pobres passaram a ter vez no processo de planejamento e de execução de políticas que atendem aos seus interesses, embora ainda de maneira insuficiente em relação às suas necessidades.

REFERÊNCIAS


OLIVEIRA, Francisco. O Estado e o urbano no Brasil. In: Espaço e debates, nº 6, jul./set., 1982.