sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Gramsci e as eleições no Brasil

No próximo mês, o Brasil elegerá seu/sua próximo/a presidente, deputados federais, deputados
Gramsci e a atualidade de suas
 reflexões para compreender 
o Brasil.
estaduais e senadores. Será uma eleição atípica em relação às anteriores, dado que a polarização das últimas eleições não deverá se repetir. Marina Silva, candidata pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), alçada à posição após a morte trágica do ex-governador Eduardo Campos, figura na vice-liderança da corrida presidencial, atrás da atual presidente Dilma Rousseff, do PT (Partido dos Trabalhadores).

É possível se compreender de maneira relacional a teoria de Gramsci sobre o Estado dentro desse contexto de disputa política proporcionado pelas eleições gerais no país. Quando o intelectual italiano, falecido em 1937, formulou sua teoria política, ele identificou o Estado como a conjunção de dois tipos de "sociedades": a política e a civil. Na primeira, se afirma a coerção em sentido estrito, compondo-se por meio de leis e pela polícia. Os aparelhos repressivos de Estado seriam utilizados de forma mais recorrente onde a sociedade civil é mais escassa, lugares onde, para Gramsci, a formação social ainda é de tipo "oriental".

A sociedade civil, por sua vez, é o espaço onde o consenso se forma. Ela é portadora material da hegemonia e está localizada entre o Estado em sentido restrito (ou sociedade política) e a infraestrutura econômica. Há na sociedade civil tanto uma autonomia frente ao Estado quanto a difusão de ideologias, de uma vontade coletiva. Ela dá substância à explicação de Gramsci sobre o fracasso do processo revolucionário na Europa, diferentemente do que aconteceu na Rússia. Como neste país a sociedade civil era débil, a única trincheira a ser disputa era a da própria sociedade política. Num país onde a sociedade civil é desenvolvida, o processo revolucionário dar-se-ia de maneira mais lenta e complexa.

A condução do Estado em sociedades mais desenvolvidas e plurais requer, portanto, organismos que sejam portadores de uma vontade coletiva e que deem sedimentação a um dado consenso. Esses organismos, chamados de aparelhos privados de hegemonia, podem ser de vários tipos, como os sindicatos, as associações, os partidos políticos, a mídia, a Igreja, jornais, revistas, redes de televisão, dentre outros.

O processo político brasileiro e o fenômeno "Marina Silva"

Com um terço do eleitorado brasileiro (33% de acordo com a última pesquisa do Ibope), Marina Silva está bem à frente da sua concorrente, Dilma Rousseff (que tem 37% segundo a mesma pesquisa), na preferência dos eleitores com renda acima dos 5 salários mínimos (37% a 28%). Dilma lidera entre os mais pobres (49% a 27%). Ainda, entre os eleitores mais jovens (42% a 31%), a partir da pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, a preferência de 42% é pela candidata pessebista.

Até poucos meses atrás, Marina envidava todos os seus esforços para a constituição de seu partido, o Rede Sustentabilidade. Não houve, apesar de toda a energia aí empreendida, êxito na sua empreitada, situação que provocou uma alteração de rumo em prol de uma composição com Eduardo Campos. Com a morte deste, a substituição de Marina alçou de maneira espetacular a preferência de uma parcela de indecisos e da classe média.

A candidatura da ambientalista é vista por alguns analistas como a herdeira dos movimentos de junho de 2013, momento em que uma considerável massa de jovens, principalmente da classe média, foram às ruas protestar por melhores condições de vida e negando o protagonismo da política institucional, ocasião em que a aprovação popular dos governos em todos os níveis desabou.

Como vimos no artigo anterior, com base na formulação sobre o Estado e o urbano no Brasil, de Francisco de Oliveira, a classe média, a partir do momento em que ganha força e consistência diante do capitalismo monopolista que emerge com o Estado de bem-estar europeu, permeada por uma divisão do trabalho que dá vazão a um segmento "improdutivo", passa a se tornar cada vez mais encorpada. Quando a ditadura anula a organização no ambiente econômico dos trabalhadores e os exclui politicamente, os setores de classe média, agora muito mais numerosos, se apropriam politicamente desse momento e desequilibram a relação entre Estado e o urbano, passando a ser atendidos de forma muito superior pelas políticas públicas quando em comparação com os mais pobres.

Até 2003, esse desequilíbrio foi constante. Somente com o governo Lula, a miséria social no país é qualitativamente reduzida. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 2003 e 2009, a pobreza no Brasil caiu 36,5%, totalizando 27,9 milhões de pessoas. Até o final do governo, foi possível construir uma pactuação social em que todos saíram ganhando, dado que, em virtude da própria economia em nível internacional, o PIB cresceu como há anos não crescia.

No governo Dilma, as prioridades dirigidas aos mais pobres foram mantidas. A grossíssimo modo, é possível dizer que as elites mantiveram intactos seus ganhos desde 2003 e assim continuou no atual governo, apesar de que, diante de um crescimento econômico precário nos últimos anos, alguém precisou perder para manter as conquistas dos setores mais privilegiados e dos mais pobres. Esse "alguém" foi a classe média, que, como já se demonstrou, é um protagonista político de grande peso nas cidades grandes do país.

É possível se demonstrar isso pelos dados do Datafolha divulgados no final de agosto. Nas cidades com mais de 500 mil habitantes, a preferência por Marina é clara (37% contra 27% de Dilma). As candidata do PT e do PSB estão empatadas tecnicamente nas cidades entre 50 a 200 mil habitantes, sendo que Dilma ganha consideravelmente bem (44% contra 29% de Marina) nas cidades com até 50 mil habitantes. O voto em Marina é, portanto, na minha opinião, um voto de protesto às prioridades evocadas pelo governo do PT, as quais, durante a gestão de Dilma, se manifestaram de forma mais forte sobre o governo. São grandes as chances de vitória dela, apesar de que, como pretendo demonstrar a seguir, suas chances de governabilidade sem grandes concessões são mínimas.

Poder e sociedade civil

Dentre todos as organizações da sociedade civil listadas anteriormente, a mídia é a que joga o maior peso. Em Porto Alegre, costumam chamar o Orçamento Participativo de quarto Poder, listado ao lado do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo. No entanto, ninguém exerce melhor um efetivo poder paralelo sobre a sociedade política do que os grandes conglomerados da comunicação. Portando um projeto próprio de poder, o que significa dentre outros, no Brasil, debilitar a política como instrumento de mudança, conter a democratização política e difundir os valores do livre mercado, a mídia brasileira, destacando-se a Rede Globo, a Veja e a Folha de São Paulo, atuaram como verdadeiros partidos políticos em franca artilharia contra o governo federal.

Como foi possível, diante de uma artilharia pesada da grande mídia, resistir aos ataques, governar e reeleger por duas vezes o projeto eleitoral conduzido pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados? Graças à força conquistada pelo PT na sociedade civil, como a direção sobre a CUT (Central Única de Trabalhadores), sobre milhares de sindicatos país afora, com a presença forte e majoritária no âmbito das instituições superiores de ensino, nas associações e organizações não-governamentais, nos movimentos "pós-materialistas" e também na própria rede de partidos políticos sobre os quais o PT atuou como força dirigente.

Qual foi a alternativa real ao PT durante todo esse período? O PSDB, articulado principalmente pela grande mídia e pelos partidos-satélites ao seu projeto, como o PPS e o DEM. Nenhum outro conjunto de organizações presentes na sociedade civil foi portador real e efetivo de um projeto alternativo de país, o que demonstra que o projeto eleitoral de Marina Silva, longe de repousar em uma sólida sociabilidade política, é expressão da recusa, da rejeição de parcelas amplas da sociedade, localizadas especialmente na classe média, à atual mandatária. Aécio, por ser expressão de um projeto de país que já mostrou suas incongruências e fragilidades, não foi capaz de dar rosto e voz a esses anseios.

No entanto, se o PT foi capaz de resistir à ofensiva midiática graças a uma sociedade civil forte e articulada em todos os níveis federativos, a candidatura de Marina está longe de oferecer essa possibilidade. Se vencer, tornando-se presidente, ela não teria o mesmo capital social do Partido dos Trabalhadores para conter as pressões que surgirão do capital financeiro e do oligopólio midiático. Dessa maneira, ela já acenou aos bancos que irá garantir a autonomia do Banco Central, medida almejada pelo setor financeiro que detém altas taxas de lucro com o que se paga de juros no país.

Sem falar que, sem uma base política ampla no Congresso Nacional, não será possível à atual candidata do PSB fazer as reformas que o país precisa, como a tributária e a política. Quanto ao Legislativo, as concessões precisariam ser ainda maiores, dado que, diferentemente do PT que assumiu o governo em 2003, a bancada de parlamentares eleitos pelo PSB é muito maior. E o partido sequer é o de Marina Silva.

Desse modo, Gramsci, mesmo desenvolvendo a maior parte da sua teoria em condições precárias (foi preso em 1926) e passadas algumas décadas desde seu falecimento, mostra, por meio de poderosos instrumentos de análise política, a atualidade de suas observações sobre o processo político e social quando analisada a sociedade brasileira da segunda década do século XXI.

Nenhum comentário:

Postar um comentário